* LIBERTAÇÃO DOS PRESOS POLÍTICOS || PORTO || 26 DE ABRIL DE 1974 *
DEPOIMENTO DE ARNALDO MESQUITA - VIA URAP
«O fim do fascismo e a queda da PIDE no Porto
Crónica do Dr. Arnaldo Mesquita
Poucos o saberão hoje e por isso o recordo aqui: Os três últimos presos políticos a serem libertados das garras e das cadeias da PIDE (DGS) no Porto, não no dia 25 mas já no dia 26 de Abril de 1974 - fez agora 33 anos! - foram um jovem comunista, chamado Jorge Pisco, de condição trabalhadora, que se havia destacado numa manifestação popular anterior enfrentando os policias (PIDE e PSP), que no decurso dela o pretenderam prender; eu próprio, seu advogado com procuração junta ao respectivo processo; e Óscar Lopes, o bem conhecido pensador, escritor, professor e ensaísta, meu querido camarada do PCP, então membro destacado (e abnegado) da tão necessária, útil (e valiosa) Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, felizmente hoje ainda vivo (e que o seja por muitos anos).
Já vos direi algo sobre o insólito de tudo isto. Por agora devo lembrar o que também nem todos saberão ou terão presente.
A queda do fascismo, na cidade do Porto, apenas se consumou no dia 26 de Abril de 1974, já com as massas populares a movimentarem-se e a manifestarem-se publicamente, assim forçando quer à rendição da famigerada PIDE (DGS), então aqui chefiada pelo depois muito falado Rosa Casaco, quer à semi-neutralização da PSP sob comando de Santos Júnior (coronel), de triste memória, celebrizado pelas malfeitorias das suas brigadas, bem conhecidas, porque especializadas em reprimir sobretudo as manifestações populares. Quanto ao Rosa Casaco (a quem eu já conhecia desde 1959, da tortura do sono por mim sofrida na sede da PIDE, em Lisboa) tinha sido escolhido depois, pelo próprio Salazar (o ditador, seu Chefe Supremo), para chefiar a brigada que atraiu Humberto Delgado a uma armadilha no Sul de Espanha e ali o assassinou).
Rosa Casaco encontrava-se então no Porto a frente da delegação da PIDE, (que Marcelo Caetano havia crismado de D.G.S)., e era secundado nisso por um tal Dr. Cunha, igualmente muito conhecido como dirigente local (e superior) dessa sinistra organização de malfeitores, torcionários e assassinos profissionais a mando dos dois, in loco.
Ora bem: Quando se tornou claro que o histórico levantamento dos militares de Abril havia triunfado em Lisboa, a multidão dos populares começou também a manifestar-se, embora de início ainda timidamente, nas ruas do Porto, concentrando-se, sobretudo de tarde, na Praça da Liberdade, na Avenida dos Aliados e ao redor delas.
Pela minha parte, deixei o meu filho mais velho na Praça da Liberdade e fui observar o que se passava com a PIDE/DGS, na sua delegação, à Rua do Heroísmo, constatando dali que o edifício estava com as portas e as janelas praticamente todas cerradas, embora com algumas sombras por detrás das mesmas, a espiar.
Junto dele não se via avistava ninguém. Literalmente, ninguém.
Concluí que a rendição (inevitável) daqueles miseráveis apenas se daria no dia (ou dias) seguintes e assim veio a acontecer de facto, no dia 26.
Quando nesse dia, seriam 8 horas, lá cheguei de novo, já as Forças Armadas estavam no interior do edifício e a multidão expectante, na rua, crescia momento a momento.
Juntei-me a um grupo de camaradas meus. Recordo alguns: Virgínia de Moura, Óscar Lopes, Papiniano Carlos, Olívia Vasconcelos. Ficamos todos junto do portão da entrada de serviço, a aguardar (e a influenciar também, na medida do possível, os soldados do MFA que ali estavam).
Em face das nossas insistências, passado já um tempão, permitiram por fim que entrássemos alguns: Virgínia de Moura (de todos bem conhecida e logo aplaudida); Óscar Lopes, idem: quer por si quer como membro da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos; e eu próprio, como advogado do Jorge Pisco, último preso político que a parte, mais retrógrada, dos militares ali presentes queria manter preso! Diziam estes (spinolistas) que não devia ser libertado, porque ele resistira à prisão defendendo-se, no acto dela!
Portanto era um preso de direito comum e não um politico, assim seguindo eles na mesma esteira da argumentação pidesca!
Tanto quanto pude perceber, o comandante dos militares que tal sustentavam, que teria negociado a rendição e que para isso teria sido destacado, era um coronel (ou major?) de seu nome Azeredo, que depois foi muito falado, nas voltas e reviravoltas do processo libertador; e que os jovens militares do MFA com quem falei, aliás, logo apontavam como spinolista ferrenho.
O qual não permitia, pois, a libertação do Jorge Pisco porque agressor da "autoridade", segundo o dissera a própria PIDE! E quiçá a PSP!
Claro, que nem eu nem Óscar Lopes, de modo nenhum podíamos concordar com isso e foi o cabo dos trabalhos:
Ficamos os três presos dentro do próprio edifício, enquanto sorrateiramente, quase sem nos darmos conta disso, os demais presos políticos já estavam em liberdade!
E (pasme-se!): os próprios PIDES em vias de o ser também.
Abro aqui um parêntesis: Logo à entrada, denunciei aos militares o famigerado inspector "Dr. Cunha" (que continuava armado, com as armas escondidas nos bolsos, e que só então foi, pressuroso, ao ver-nos, entregá-las a um militar).
Tal como denunciei o Rosa Casaco, indicando-os a ambos como responsáveis principais dos muitos crimes ali cometidos, e frisando bem que podia testemunhar, pessoalmente, quer a tortura do sono por mim sofrida anos antes, quer, como advogado, a tortura sofrida pelos outros presos às ordens do primeiro (Rosa Casaco) e do segundo (Dr. Cunha). Mas debalde o fiz.
Como que à socapa, passado pouco tempo e quase sem nos darmos conta disso, também os PIDES foram metidos em camiões, e retirados dali.
Soube-se mais tarde que vieram a ser soltos todos, imagine-se! para os lados da Maia nos arredores da cidade do Porto.
E assim ali ficamos nós - eu, Óscar Lopes e Jorge Pisco - guardados pelos militares, quais presos políticos de última hora, fechados no soturno edifício.
Fomos fotografados até, por um repórter que entretanto devia ter conseguido entrar, ao meio da tarde. Finalmente, meteram-nos num veículo militar e conduziram-nos ao Quartel General, aonde um jovem graduado do MFA, indignado com o que lhe contámos, nos mandou em paz depois de nos informar que os PIDES não se encontravam nem haviam passado por ali! Desconhecendo ele o seu paradeiro.
E assim, Rosa Casaco, o torcionário e assassino chefe da brigada que matou Humberto Delgado, etc, etc., pôde ir tratar da rica vidinha, para Espanha, como qualquer inocente cidadão deste país, até que a prescrição o salvasse!
No tocante ao "Dr. Cunha", este até teve a "lata" de tentar inscrever-se como advogado na respectiva Ordem, o que não conseguiria. Aliás, seguindo o exemplo doutros fascistas notórios, das altas esferas, ministros incluídos, que o conseguiram!
E pronto. Fico-me por aqui, por agora.
[...]»
Crónica publicada no semanário Terras Vale do Sousa - Lousada
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