* IMAGENS DA MULHER NA IMPRENSA FEMININA DE OITOCENTOS. PERCURSOS DE MODERNIDADE *
[Ana Maria Costa Lopes || 2005 || Quimera Editores]
* TEXTO PARA A REVISTA FACES DE EVA, N.º 15, 2006 *
"Ana Maria Costa Lopes, Imagens da mulher na imprensa feminina de oitocentos. Percursos de Modernidade, Lisboa, Quimera, 2005, 749 pp.
Obrigatório. Obrigatório folhear, ler, manusear, reler e discutir este livro enciclopédico de Ana Maria Costa Lopes, essencial não só para quem se dedica aos Estudos sobre as Mulheres, como para todos os que mergulham nos meandros da cultura oitocentista portuguesa, que teve, afinal, um não displicente contributo feminino.
Por centenas de páginas perpassa a herança setecentista; a evolução e as contradições dos pensamentos feminino e masculino ao longo do século XIX; sente-se, a partir do periodismo feminino, aquele que “permitiu estabelecer um «diálogo» entre os dois sexos, um fio mágico que facultou a saída das mulheres da penumbra” (p. 257), o pulsar da sociedade, mudanças e transformações, avanços e retrocessos; clarifica-se como “as mulheres de Oitocentos foram ultrapassando a especificidade que, em termos politicamente correctos, era atribuída ao seu sexo” (p. 248) e se processou, lentamente, demasiado lentamente tantos eram os obstáculos, o combate à discriminação, intolerância e obscurantismo; pressente-se a aproximação de novos tempos e lutas.
O “tema central deste trabalho consiste [...] nas imagens da mulher portuguesa ao longo dos setenta centrais anos do século XIX, seus papéis sociais e padrões tradicionais de comportamento, seu estatuto, todos eles vistos numa perspectiva de transformação social e cultural” (p. 16), elaborado a partir da leitura e análise dos periódicos femininos, dirigidos ou não por mulheres, publicados entre 1820 e 1890, considerados por Ana Costa Lopes como “lugares privilegiados da manifestação de um pensamento feminino que luta por uma identidade que lhe era negada pelas estruturas sociais” (p. 18) e constituindo, assim, um corpus documental coerente, tanto do ponto de vista cronológico, como quanto à diversidade que a abundância de materiais permite. Para além dele ser constituído por 60 títulos, completando o precioso arrolamento de Ivone Leal, a autora socorreu-se ainda da imprensa não feminina e de artigos de referência nela publicados.
Ao procurar identificar “a caminhada da ascensão intelectual feminina, seu reforço a afirmação” (p. 20), bem como “estudar as estratégias de luta contra a exclusão e a discriminação, os modos de conquista do saber, do fazer, do agir” (p. 18) entre 1820, data do triunfo do liberalismo político, e 1890, ano do Ultimatum, tratando-se de uma época que “pode ser caracterizada como uma das mais significativas do arranque da acção da mulher em prol da sua libertação” (p. 21), Ana Maria Costa Lopes não só esmiúça os “percursos de modernidade” possíveis trilhados pela mulher/mulheres, como evidencia o falhanço do Liberalismo quanto à instrução feminina – partindo do princípio que alguma vez esteve verdadeiramente interessado nela, como refere –, e põe a nu o conservadorismo, para utilizar um vocábulo suave, da intelectualidade mais sonante do século XIX – Garrett, Ramalho Ortigão, Eça de Queirós, Maria Amália Vaz de Carvalho – sempre que estende as suas reflexões ao sexo feminino, que não teria nascido “para frequentar a palestra, o foro ou a tribuna” (Almeida Garrett, p. 134).
Ao longo de quinze elucidativos capítulos expõe os conflitos e contradições entre tradição e mudança, conservadorismo e progresso, de que resultaram alterações, naqueles setenta anos, na situação das mulheres portuguesas: “O século XIX é, com efeito, um crisol de ideias que leva a metamorfoses profundas, em múltiplos planos, individual, social e cultural” (p. 597).
Ao longo de quinze elucidativos capítulos expõe os conflitos e contradições entre tradição e mudança, conservadorismo e progresso, de que resultaram alterações, naqueles setenta anos, na situação das mulheres portuguesas: “O século XIX é, com efeito, um crisol de ideias que leva a metamorfoses profundas, em múltiplos planos, individual, social e cultural” (p. 597).
Com uma pesquisa exaustiva, rigorosa e fundamentada, tal como já tinha evidenciado em anteriores pesquisas, a autora conseguiu não ficar submergida nas fontes e leituras e manter a unidade da investigação, sabiamente subdividida em quatro partes, correspondendo a três períodos bem delimitados – “1820-1850: A Emergência Pública da Mulher”; “1850-1870: Do Desequilíbrio ao Equilíbrio de Saberes e Poderes”; e “1870-1890: A Voz do Progresso e o Retorno da Tradição” –, antecedidos de “Alguns Aspectos da Educação e da Instrução no Século XIX”.
Apesar das diferenças entre os três tempos cronológicos, Ana Maria Costa Lopes desmonta, sempre suportada pelas fontes coevas e estudos posteriores, como se “fabricou” entre os contemporâneos a imagem pretendida da mulher oitocentista, num jogo de sombras, silêncios, meias-verdades, anonimatos, esquecimentos, omissões, para além da desvalorização sistemática e requintada de qualquer intervenção feminina que saísse fora dos cânones da época ou que se pressentia ameaçadora, e demonstra, em eficaz contraponto, como se processou a assunção da identidade feminina e a lenta conquista do espaço público – cultural e social –, pelas mulheres e como isto podia ser visto como um avanço, com reflexos na redefinição do seu estatuto na sociedade e no reconhecimento de novos papéis. O que é certo é que “burguesas ou não, portuguesas ou estrangeiras, as mulheres do século XIX não se ficaram pelas tarefas domésticas” (p. 163) e “foram-se afirmando lentamente na sociedade, sem grande alarido, ocupando espaços públicos e funções até aí reservados aos homens” (p. 163).
À mulher ignorada, menosprezada, ridicularizada, inferiorizada, vão-se contrapondo ao longo do século mulheres que procuraram, nem sempre conscientemente, romper com as imagens estereotipadas que lhes estavam associadas e que lutaram por um lugar diferente daquele que de há muito se lhes atribuía, confinando-as à esfera privada e às funções tradicionais no seio da casa e da família.
Ana Costas Lopes retira da sombra e do anonimato um conjunto diversificado de iniciativas e nomes – de beneméritas e benfeitoras a professoras, escritoras, nobres e aristocratas – que estiveram, mesmo que indirectamente, associadas à dignificação da condição das mulheres, nomeadamente através da valorização de actividades relacionadas com a instrução e educação femininas, a preparação para os ofícios tradicionais e a formação dos primeiros grupos profissionais de mulheres. Em todos os casos, emergem mulheres activas e visíveis que souberam romper, sobretudo pela palavra, com a discrição a que deviam estar confinadas e vencer as dificuldades que a exposição pública acarretava, abrindo caminho, por vezes de forma conciliatória e contraditória, numa sociedade totalmente dominada pela hegemonia masculina.
Mais do que a Imagem da Mulher Portuguesa no singular, estamos perante imagens das portuguesas, nem todas coincidentes, apesar do conjunto de características comuns a todas e que as aproximavam, inevitavelmente, entre si, independentemente das condições económicas, sociais e culturais. Ana Costa Lopes tem subjacente a preocupação, que nunca a abandona, de calcorrear o caminho que as vai transformando de seres “fúteis” em seres “pensantes”, vistas por si próprias e também pelos outros, pelos autores oitocentistas do sexo masculino e cujo conteúdo oscila entre o menosprezo, o silenciamento e o reconhecimento condicionado.
O confronto sistemático e inteligentemente articulado entre autores(as) emblemáticos(as) e escritos do sexo feminino e masculino, quando estão em causa reflexões sobre as mulheres, permite ao leitor e ao investigador ter uma perspectiva factual e global sobre a forma como decorreu a lenta redefinição dos papéis das mulheres na sociedade, como se foi desconstruindo e reconstruindo as relações entre os dois sexos, como se consolidou, com avanços e retrocessos, o discurso da emancipação feminina e, sobretudo, porque se revelou tão morosa a passagem do recato do lar à emergência pública das mulheres. A partir do que se escreveu na imprensa consultada pela autora, percebe-se que não existia uma dicotomia absoluta entre a produção escrita dos dois sexos – os homens, de um lado, as mulheres, do outro -, mas antes uma relação dialéctica e sincrónica entre ambos.
Explorando com mestria o contraditório, é-nos dada a percepção de como as mulheres, através de certas mulheres transgressoras, foram entrando na esfera pública e lutaram para atenuar e, se possível, inverter as situações de exclusão profissional, social, cultural, educativa e cívica de que eram vítimas há muito; e como os “notáveis” homens de letras oitocentistas se ancoraram a discursos misóginos e imobilistas.
Dos três períodos analisados, não deixa de ser curioso que o correspondente aos anos da Geração de 70 revele um retrocesso em relação ao anterior e seja dominado pelo conservadorismo quanto à emancipação feminina, estando presente muita da argumentação recuperada pelo antifeminismo do século seguinte. Termina, fazendo a ponte com Ana de Castro Osório, nome associado a outra época e a outras batalhas em torno da reivindicação de direitos para as mulheres.
Numa leitura obviamente subjectiva e interesseira, um dos méritos da autora foi ter traçado não só as “mudanças e continuidades no estatuto e imagem da mulher na sociedade oitocentista portuguesa” (p. 517), como tornou claro, talvez pela primeira vez, que o feminismo do início do século XX não surgiu do nada, tendo antes um importante suporte cultural construído durante dezenas de anos, resultado da persistência de muitas mulheres que encontraram na imprensa o seu principal, se não único, agente de afirmação e de emancipação femininas.
Além de tudo o que uma Leitura sucinta não comporta, a obra de Ana Maria Costa Lopes revela-se fundamental para compreender a genealogia de muitas das ideias e ambientes que se tornaram correntes nas primeiras décadas do século XX e que estiveram na origem do tardio associativismo feminino e feminista português. É que, “apesar da rigidez das representações da mulher oitocentista, é no século XIX que começam a soprar os ventos de mudança que se concretizam posteriormente na emancipação” (p. 24).
Projecto estruturado simultaneamente por períodos e temas, de que o índice é um excelente exemplo, permite tornar-se um livro de consulta ou de leitura sequencial, facultando ao leitor perspectivas autónomas e coerentes, mas sempre interligadas, notando-se a preocupação em proporcionar pistas a seguir, temas a desenvolver, fontes a aprofundar ou a explorar, de forma a não caírem, novamente, no esquecimento. As fichas descritivas de cada publicação analisada, inseridas no final, não são de menor relevância para quem se dedica à investigação e lida com fontes deterioradas e perecíveis. Muito mais haveria a dizer tal a riqueza, diversidade e complexidade desta obra pioneira de Ana Maria Costa Lopes."
João Esteves
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