* A PIDE E SUAS PERSPECTIVAS SOBRE A CENSURA: DOIS EXEMPLOS *
Texto || Paulo Marques da Silva
«A PIDE e suas perspectivas sobre a Censura: dois exemplos
Em Novembro de 2020, no jornal Terras de Sicó, onde publico alguns artigos, numa rúbrica intitulada “Pequenas histórias da PIDE e da Censura”, escrevi o texto “A PIDE, os jornais e Fernando Namora”, onde é possível verificar que, algumas vezes, as notícias publicadas nos jornais resultavam no principiar de diligências ou investigações por parte daquela Polícia. Não é, pois, de estranhar que muitos dos processos individuais da PIDE/DGS estejam inundados de recortes de notícias de jornais publicados. No caso do processo principal de Fernando Namora, verificamos que os documentos que estão em maior número são mesmo os recortes ou cópias de páginas de jornais. Mas, o caso de Namora não é único, bem longe disso.
O que torna esta situação mais curiosa é que existia uma instituição denominada Censura e, em Portugal, comentava-se, com vincada ironia, que os jornais vinham tão “limpos” que parecia que vinham “de um País onde não acontecia nada”. Bom, pelos vistos, ainda assim, a PIDE arranjava matéria para “trabalhar”.
Depois desta nota inicial, vejamos, então, dois modos diferentes de olhar para a Censura, ambos passados na cidade de Coimbra, embora em períodos diferentes e com interlocutores diferentes.
Em Coimbra, corria o ano de 1951 e o inspector Sacchetti queixava-se que, desde há alguns dias, se vinha notando aquilo que designava como uma “agitação indiscriminada” e “uma preocupação constante”, quer de indivíduos desafectos ao regime, quer de elementos considerados como “bons situacionistas”. Segundo Sacchetti essa agitação traduzia-se numa “liberdade extraordinária de comentários” e, também, nas “notícias publicadas em alguns jornalecos”.
O chefe da delegação da PIDE de Coimbra escolhia dois exemplos para elucidar a sua ideia: um deles era uma publicação do Diário de Coimbra, de 12 de Abril, que versava sobre o facto de certos equipamentos, como máquinas de escrever, poderem ser requisitados à Direcção Geral da Fazenda Pública por parte de certos sectores do funcionalismo público, enquanto outros não tinham o mesmo acesso. A outra era uma publicação do Ecos do Caramulo, de 15 de Abril, que referia que corria um boato de que o general Mac Arthur, que havia sido há pouco tempo exonerado do cargo de Comandante-chefe das forças da ONU na Coreia, ia ocupar um alto lugar no Banco Nacional Ultramarino.
Perante estas notícias, Sacchetti referia que era de “estranhar” como os Serviços da Censura deixaram publicar esta última notícia que com grande “descaramento” procurava “levar a ridículo e fazer espirito com decisões tão graves para a política internacional e interna”. Sacchetti acrescentava que, para além daqueles assuntos, que se ouviam por todo o lado “desde os cafés aos carros eléctricos”, e por todas as pessoas “dos democráticos aos comunistas e destes aos que se dizem monárquicos e situacionistas”, os temas que se comentavam eram sempre os mesmos: “desfalques nos organismos oficiais, nomeação dos antigos Ministros, ordenados pagos pelas empresas e sua comparação com os dos servidores do Estado, acumulações de vencimentos, possibilidades duma restauração da monarquia, etc”. Ou seja: Sacchetti criticava algum laxismo da Censura, deixando que os jornais publicassem notícias, que não deveriam ver a luz do dia.
A situação é diferente no caso seguinte. No mesmo jornal que atrás referi, em Dezembro de 2020, escrevi outra história denominada “O pão de cada dia”. Este título é, na realidade, da autoria do bispo de Coimbra, Francisco Rendeiro, que, no dia 29 de Março de 1969, no jornal Correio de Coimbra, publicara um artigo com aquele título. O texto versava o problema da fome, mas não só da comida propriamente dita. Era a questão da privação, da ausência, utilizando o pão como metáfora, reflectindo, igualmente, a problemática da sua repartição.
Ora, o que aconteceu é que a Censura cortou um pequeno trecho do texto.
Esta situação indignou os responsáveis da Igreja, em Coimbra, e o padre Valentim Marques entendia que tal corte era inadmissível. O caso chegará ao conhecimento da delegação da PIDE desta cidade que, por sua vez, fará chegar a informação à sua sede, em Lisboa, através do inspector da delegação, Leite de Faria, nos seguintes termos:
Junto tenho a honra de remeter a V. Ex.ª a fotocópia da prova tipográfica do artigo intitulado “O PÃO DE CADA DIA”, continuação de outros já publicados no órgão da Diocese “CORREIO DE COIMBRA”, da autoria do Bispo de Coimbra D. FRANCISCO RENDEIRO, no qual os Serviços de Censura eliminaram a expressão “é tremendo o problema da distribuição das riquezas”, que em nada prejudicava o seu contexto.
O facto provocou forte reprovação dos responsáveis da Gráfica de Coimbra, encarregada da impressão do jornal, nomeadamente o Padre VALENTIM MARQUES, vincadamente manifestada na anotação por ele feita à margem: “ISTO É MISERÁVEL! Trata-se de um documento Pastoral, com que a censura nada tem a ver!”.
Parece, pela expressão utilizada – “que em nada prejudicava o seu contexto” - que também a PIDE achou despropositado o corte efectuado pela Censura.
A pergunta é: será que a PIDE estava mais ”primaveril” neste período específico (1969), já sob a tutela de Marcelo Caetano, ao contrário do que vimos no tempo de Sacchetti, em Coimbra, no ano de 1951, ou a maior benevolência da PIDE sobre a actuação da Censura teria a ver com o facto do autor do texto se tratar de um bispo?»
[Paulo Marques da Silva]
Sem comentários:
Enviar um comentário