* ANA DE CASTRO OSÓRIO || 19/03/1911 *
Artigo de Ana de Castro Osório no jornal O Radical, onde critica António José de Almeida por não contemplar, na primeira lei eleitoral da República, o sufrágio feminino restrito
«A mulher na lei eleitoralSaiu, finalmente, a lei eleitoral. Como já o esperávamos, o voto feminino não foi sequer nela estabelecido, como princípio progressivo e democrático.Como o prevíamos, a mulher continua a ser na República um valor nulo, para não dizer negativo.A mulher paga impostos como o homem, a mulher pode negociar como o homem, a mulher é médica como o homem, a mulher é a professora, é a educadora, é a dirigente de muitas casas e indústrias, a mulher pode ser tudo... menos cidadã livre duma pátria livre.Como as praças de pret, os indigentes, os pronunciados por crimes não julgados, os interditos, os falidos, os portugueses por naturalização, - as mulheres, sejam elas quais forem, não têm uma só voz que corresponda a um voto!Nós já o prevíamos e por isso nem sequer nos indignámos, porque a República, nesse ponto, já não nos podia dar nenhuma surpresa.Quando o sr. dr. António José de Almeida lançou a ideia de que as mulheres republicanas se juntassem numa Liga de propaganda política, teve a amabilidade de pensar no nosso nome para encetarmos os primeiros trabalhos da agremiação. Nessa ocasião dissemos a s. ex.ª o mesmo que lhe dizemos hoje: - «politicamente, a República será para os senhores; nós continuaremos a ser dentro dela o que somos hoje, com algumas modificações nas leis que não poderão deixar de ser modernizadas pela força das circunstâncias. Nós somos mulheres, quer dizer: na sociedade constituída criaturas sem direitos políticos nem civis; a República – governo olhará para nós com o desdém com que os governos monárquicos nos têm sempre olhado. No entanto, como dentro do regimen actual nada poderemos avançar colectivamente, nem o povo receberá instrução e educação, nem as leis serão ao de leve modificadas, nem o dinheiro passará das unhas aduncas da burguesia afidalgada e das do seu rei; como o princípio monárquico só por si é um vexame para todo o ente humano que se preza de ser digno e altivo; como todo o país sofre desta asfixia moral que nos avilta, e que anula todos os nossos bons impulsos, gafando todos os caracteres e aniquilando todas as boas vontades, estarei a o vosso lado, falarei às mulheres liberais, dir-lhes-ei o caminho que leva à República, que é uma “etapa” vencida para mais útil caminhada.«Mas faço-o na certeza de que receberemos a resposta que a primeira república francesa deu às mulheres que a ajudaram a fazer...».O sr. dr. António José d’Almeida protestou que tal não sucederia, porque ele era fiador do partido republicano perante a Liga política que desejava se formasse. E o que nos disse particularmente, proclamou-o na primeira reunião da Liga num magnífico discurso que a direcção fez publicar na revista «A Mulher e a Criança», órgão da mesma agremiação.Apesar das suas promessas, confirmadas pelos srs. drs. Bernardino Machado e Magalhães Lima, nessa reunião, e pelo congresso realizado aqui mesmo nesta cidade de Setúbal, duvidámos sempre... Não se conhece baldamente a história dos povos, que por seu turno raro fazem obra inédita, apesar de tudo o levar a esperar quando as modificações políticas ocorrem numa hora já adiantada da civilização.A confirmação da nossa dúvida aí temos na lei eleitoral onde a mulher foi esquecida pelo próprio sr. dr. António José d’Almeida, sem a mais ligeira sombra de atenção pelas promessas feitas pessoalmente e pelas afirmações colectivas do partido.Nós, as mulheres portuguesas, continuamos pois... a não ser portuguesas, porque todo aquele que não tem direitos civis nem políticos não é cidadão português.A maioria das mulheres do nosso país aprovará entusiasmada talvez a omissão da lei, porque a grande maioria sente-se bem no seu papel de servidão; não se julga com direito nem merecimento para exigir mais. Pela nossa parte protestámos, embora sem indignação, porque só nos indigna o que nos surpreende.Sem as leis do sr. dr. Afonso Costa, que foi o que menos nos prometeu e o que menos feminista era julgado, o Governo Provisório da República seria para nós a mais triste confirmação das palavras de Eclesiastes: nada há novo sob o sol...Do senhor José Relvas, pelo ministério das finanças, donde menos se poderia esperar um qualquer triunfo feminista, tivemos a criação dos quinze lugares para empregadas na Junta do Crédito Público, o que não é nada para a enorme necessidade que a mulher tem de trabalhar e viver honestamente do produto do seu trabalho individual, mas que foi muitíssimo como princípio estabelecido.Que o mesmo tivesse feito o sr. ministro do Interior, consignando como princípio o voto para um número limitado de mulheres, e já poderíamos contar com um triunfo moral a nova lei eleitoral.Dizem-nos agora que trabalhemos para obter das «Constituintes» o que nos foi agora negado, por quem tão solenemente no-lo prometera na sua propaganda...Valerá a pena tentar?!Quase nos inclinamos a que não, porque quando um homem superior não se pode colocar acima dos precon-ceitos para fazer uma obra de justiça, o que poderá fazer uma colectividade em que a maioria há-de ser, como todas as maiorias, mais propensa ao comodismo das ideias adquiridas pelo hábito e pela educação?!."
Ana de Castro Osório
[O Radical, 19/03/1911]
[João Esteves]
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