[Cipriano Dourado]

[Cipriano Dourado]
[Plantadora de Arroz, 1954] [Cipriano Dourado (1921-1981)]

sexta-feira, 26 de março de 2010

[0044.] MARIA VELEDA [IV] || 26/03/1911

* MARIA VELEDA || 26/03/1911 *

LEI ELEITORAL DA REPÚBLICA

Reflexão de Maria Veleda na "Tribuna Feminina" do jornal O Tempo [26/03/1911, p. 3, cols. 1-2], sobre a primeira lei eleitoral da República. 

Tece considerações críticas sobre Madeleine Pelletier e assume-se como contrária ao sufragismo.


«A propósito da reforma da lei eleitoral
 
Muito se fantasia lá por fora! Ainda não há muito tempo, apareciam as esquinas, em Paris, cobertas de espaventosas affiches, noticiando que a República Portuguesa, a dois dias da sua proclamação, resolvera conceder o voto às mulheres. // Madame Pelletier, justamente surpreendida, abalou de longada, caminho deste país extraordinário, que, marchando, aliás, na retaguarda do progresso,  dava a todos os países civilizados uma lição de igualdade tão estrondosa e tão completa. // «Devem ser prodigiosas as mulheres portuguesas» diria de si para consigo a ilustre propagandista do sufrágio feminino. «É impossível que as mulheres portuguesas não disponham de um partido feminista devidamente organizado, muito embora, nos congressos internacionais onde temos reivindicado os nossos direitos, elas brilhassem sempre pela ausência. No seu país, essas mulheres privilegiadas terão realizado importantes comícios, feito uma intensiva propaganda a favor do ideal. Devem ser modelares as feministas portuguesas; e o governo republicano, que lhes concedeu o sufrágio, deve ser o governo mais progressivo do mundo!» // É provável que madame Pelletier levasse para a sua terra alguma desilusão... Pelo menos, num artigo que publicou num jornal francês, e foi reproduzido na Capital, a ilustre escritora burilava frases discretamente irónicas, que alvejavam alguns dos nossos políticos mais em evidência. Madame Pelletier declarava, por exemplo, que o dr. Afonso Costa não era feminista, e que o dr. Bernardino Machado o era a seu modo... // É que, para o feminismo de madame Pelletier, todo aquele que não defenda o sufrágio, não é feminista. // Não conhecemos a opinião do doutor Afonso Costa nem a do doutor Bernardino Machado sobre o sufrágio, mas se o último se tem revelado sincero e convicto feminista em teoria, o dr. Afonso Costa realizou num brevíssimo lapso de tempo algumas das mais importantes reivindicações feministas e que mais interessam à vida sentimental da mulher. A lei da família e a lei sobre o divórcio não viriam melhorar bastante a situação da mulher portuguesa? A lei da família, que nivela os filhos bastardos com os filhos legítimos e levanta a mulher sem esposo e sem coroa virginal, que o preconceito enjeita e despreza, à dignidade augusta de Mãe, não foi um avanço importantíssimo no caminho da emancipação feminina? // Mas o voto interessa mais as sufragistas; e madame Pelletier retirou-se de Portugal, levando, certamente, as suas primeiras previsões muito abaladas... // Agora, é um jornal inglês que noticia ter o governo da República concedido o voto às mulheres portuguesas, acrescentando ainda que uma importante sociedade feminista celebrou este triunfo em reunião especial... // E enquanto estas deliciosas fantasias vão marchetando de purpura e ouro o azul diáfano da ilusão, as mulheres portuguesas continuam vivendo tranquilamente, burguesmente a sua existência igual e monótona... // Publicada a nova lei eleitoral, algumas mulheres haveria que a lessem com certa curiosidade r interesse. Não pertencemos nós a este número. A lei passou-nos despercebida; e se uma nossa colega não nos escrevesse sobre o assunto, calculando que devêssemos estar satisfeitíssimas, porque a lei eleitoral continuará excluindo as mulheres do direito do voto, ainda neste momento ignoraríamos essa, ao que parece, suprema injustiça do Governo da República. // Injustiça... será. Realmente, perante a lógica e o princípio de igualdade por que devemos nortear-nos, não é admissível que qualquer lapuz ignorante seja eleitor e uma mulher ilustrada o não seja. Isto está sobejamente discutido, e não temos a estulta pretensão de convencer os inconvencidos, que a nenhuma razão se dobram e persistem nas suas opiniões, menos por convicção do que por espírito de rotina. De resto -, mais uma vez o dizemos -, não nos preocupa a questão do sufrágio, que pode ter razão de existir noutros países mais cultos, mas que apenas começa a revelar-se, muito timidamente, em Portugal. // Não basta que meia dúzia de senhoras cultas reclamem o direito do voto, para que qualquer governo lho conceda como um mimo – uma caixinha de bombons, ou um raminho de violetas. // Não basta que um grupo interprete o sentir da minoria – é preciso que essa minoria dê, pelo menos, sinais da sua existência. // Uma lei não se atira ao acaso, para o meio da multidão. E onde estão essas mulheres que reclamam o direito ao voto? Onde apareceram elas a reivindicar esse direito? // As inglesas, por todos os meios ao seu alcance, desde a propaganda falada e escrita à propaganda pela força e pela violência, ora realizando meetings, ora assaltando o Parlamento, sujeitando-se aos maiores vexames, não as intimidando a prisão, e ganhando terreno dia a dia, são dignas de admiração e respeito. Combatem por um princípio de igualdade, e por mais que tenham tentado inutilizá-las pelo ridículo, elas prosseguem altivamente na sua campanha. Presentemente, as inglesas estão esperançadas em que o Conciliation Bill, que foi redigido por cinquenta deputados, passe este ano no Parlamento. // Mas falaremos mais de espaço sobre este assunto. // Na França, a propaganda feminista tem-se feito, revestindo o mesmo carácter sufragista. As francesas, porém, como as inglesas, podem lutar contra um meio hostil às suas reivindicações, porque o partido dispõe de muitas mulheres com aptidões literárias e científicas, dispõe de numerosas oradoras e incansáveis propagandistas, dispõe de dinheiro, que é a mola real de todos os cometimentos. // E nós? Onde estão as nossas oradoras? Como se tem feito a nossa propaganda? Em que comício defendemos já os nossos direitos? Quando nos fizemos representar num congresso? Onde nos manifestámos publicamente? // O que temos feito – meia dúzia de artigos publicados, duas ou três reclamações assinadas por seis ou oito nomes, não representa não pode representar a vontade sequer da mais insignificante minoria. // Apareçam as oradoras, façam-se conferências – não por homens, que é deprimente esperar deles a obra que deve ser nossa, exclusivamente nossa – revolucione-se a opinião, faça-se a propaganda, como a fazem as feministas estrangeiras, organizem-se manifestações públicas, realizem-se comícios, prove-se, finalmente, que as mulheres portuguesas estão educadas para reivindicarem os seus direitos, e só então, se o governo persistir em recusar-no, poderá dizer-se que praticou uma revoltante injustiça. // Pela propaganda escrita, nunca as sufragistas portuguesas conseguirão o que pretendem – já porque é limitadíssimo o número das nossas escritoras, já porque, só por meio de actos, mais ou menos irreverentes, mais ou menos corajosos, conseguirão impor-se e dominar o preconceito. // É o que acontece em Inglaterra, onde apenas dois jornais se referiram a um substancioso discurso, sobre sufrágio feminino, proferido na câmara dos Pares por um notável homem político, ex-ministro e o leader da oposição. // Não somos sufragistas, repetimos, por coerência com os princípios que professamos, mas se o fossemos e quiséssemos triunfar, adoptaríamos a atitude das mulheres  inglesas, caso pudéssemos contar com a coragem e a dedicação das restantes partidárias do sufrágio feminino. // Maria Veleda.»

[O Tempo || 26/03/1911]

[João Esteves]

Sem comentários: