* JULGAMENTO DE MARIA VELEDA || TEXTO DE ANA DE CASTRO OSÓRIO || 17/03/1909 *
Julgamento de Maria Veleda no Tribunal da Boa-Hora, processada por um artigo considerado ofensivo para com a rainha D. Amélia. Ana de Castro Osório, no jornal A República, toma a sua defesa.
«A mulher perante a lei
Não se pode dizer que a mulher portuguesa tenha, neste momento, razão de queixa, sob o ponto de vista das suas reclamações sociais.O que pedimos nós ao homem, considerado no seu papel antipático de senhor e tirano?Igualdade de direitos e de deveres.Ora é exactamente igualdade de direitos e de deveres que o homem nos concede, igualando-nos perante a lei... condenatória.Certamente não é pela galantaria nem pela justiça que se manifesta a generosidade masculina em frente da questão feminista; mas, nunca foi pela bondade, pela razão, nem pela inteligente compreensão dos direitos alheios, que os senhores se viram compelidos a dar as liberdades que os povos escravizados lhes reclamaram, primeiro timidamente, depois com a altivez que dá a força da razão...Perante a lei, o que somos nós, as mulheres, neste país ideal onde floresce a laranjeira e o céu raro despe a túnica de gala azul e oiro?Perante a lei somos iguais aos menores e aos loucos como casadas; e, se como solteiras ou viúvas, temos mais alguns direitos e liberdades sociais e civis, temos ainda a classificação política de párias, concorrendo com o nosso trabalho e o nosso dinheiro para o Estado em que nenhuma influência directa podemos exercer.Mas toda esta desigualdade e injustiça masculina desaparece perante a lei penal.Então sim, então somos iguais aos homens, deixamos de ser menores, inferiores, doentes, incapazes, então... para sofrer as penalidades do código somos iguais aos nossos irmãos... no crime.Se a mulher não fosse, pela ancestralidade da educação e dos costumes, uma escrava moral do preconceito, se ela tivesse bem desenvolvida e bem nítida na sua alma a noção da liberdade e a ânsia do triunfo, teria pensado há muito na injustiça de que é vítima e escolheria tranquilamente um lugar na galeria dos criminosos célebres, que é o único onde a igualam ao seu senhor e amo.A lei é, como se vê, uma instigadora do crime.Eis o motivo porque a notícia do processo movido contra a distinta escritora e polemista intemerata, Maria Veleda, não causou desgosto e sim nos orgulhou a todas nós, as mulheres liberais.Por um artigo, aliás magnificamente escrito, em que o sr. dr. delegado do ministério público, como fiscal da lei, que não como colega da distinta publicista, supôs haver ofensas à sr.ª D. Amélia de Orleães e incitamento ao ódio contra aquela senhora, nós vamos ter um verdadeiro triunfo feminista.É discutindo os preconceitos que eles realmente se nos apresentam ridículos e balofos, como ideias mumificadas duma outra idade.É agitando a opinião pública que se despertam as consciências adormecidas pela acção nefasta do rotineirismo.É encarando resolutamente o perigo que ele a maior parte das vezes se converte em papão ridículo, em sombra, em coisa alguma.Quem vai responder no tribunal da Boa-Hora, na próxima 4.ª feira 17 de março (a cinco dias da abertura oficial da Primavera, na folhinha), não é Maria Veleda a escritora distintíssima, a professora ilustrada, a mãe apaixonada, a educadora consciente, a jornalista, a polemista, a conferente...Não! Quem vai responder é a mulher!Isto é; quem aparece diante dos julgadores levantando a cabeça honrada com a distinção que é conferida ao nosso sexo colectivamente, é a feminista, é a combatente, a reivindicadora dos nossos direitos.Já que a lei nos expulsa com soberba da tribuna do juiz, da mesa do advogado, das cadeiras dos jurados e até do lugar de escrivão e de oficial de diligências, nós tomamos com dignidade e até com orgulho, o lugar de vítimas, que se rebelam, que é o que na sociedade tem agora o nosso sexo, neste acordar da consciência feminina, cansada de injustiças, cansada de sofrimento inútil.Vamos assistir ao espectáculo curioso de ver como a lei considerando a mulher um ser nulo, politicamente falando, vai julgar uma mulher pelo crime que tem por corpo de delito o artigo em que, apenas sob o ponto de vista político, se encara a figura régia da sr.ª D. Amélia de Orleans.O absurdo é cada vez menos permitido à razão humana, e absurdo é por certo este que nos põe em igualdade de circunstâncias perante o público para quem escrevemos e perante a lei penal que nos chama à responsabilidade do que dizemos, e nos coloca na sociedade e na família como uns entes inferiores ao homem, por mais que isso nos repugne e por mais que ele hoje queira atenuar a brutalidade das leis trogloditas que nos governam, vexados por uma superioridade que em sua consciência não podem reconhecer-se.É com curiosidade e também com orgulho que todas as mulheres conscientes aguardam o julgamento do dia 17 como uma verdadeira lição de feminismo, que será perdida.».
Sem comentários:
Enviar um comentário