"A morte de Maria Albertina Agostinho Sabino"
por José João Pais, transcrito de
[http://jornalalpiarcense.blogspot.pt/2012/12/a-morte-de-maria-albertina-agostinho.html]
“Estávamos a fazer a nossa vida com a normalidade possível”
refere Manuel Mendes Colhe, “eu saía de manhã, como se fosse para o emprego e
voltava à noite. A Maria Albertina fazia a lida da casa e parecia na realidade
um casal a fazer uma vida pacata e perfeitamente normal. Como normal foi ela
ter ficado grávida. Mas nós dois começamos a perceber da gravidade da situação,
porque não nos podíamos esquecer que estávamos na clandestinidade, que tínhamos
identidades falsas e que qualquer percalço, por mais pequeno que fosse, poderia
transformar-se num grande problema. A gravidez dela era uma situação a requerer
a nossa melhor atenção, atendendo ao modo em que vivíamos”.
O casal decide que o parto iria ocorrer no Cartaxo, na casa
de um amigo de Manuel Mendes Colhe. Correu tudo sem qualquer problema, tendo
nascido um menino que foi registado no Cartaxo e a quem puseram o nome de
Manuel Celestino Sabino Colhe.
Deu-se o regresso a Lisboa e à actividade política na
clandestinidade. “Entretanto a minha esposa começa a ter febres muito altas”
refere mais uma vez Manuel Mendes Colhe, “tomou alguns medicamentos, mas nada
fazia baixar a temperatura. Tratava-se de uma infecção muito forte nos ovários,
motivada pelo parto e que não fora convenientemente tratada devido à nossa
situação de clandestinidade, que não nos permitia grandes exposições públicas,
o que evitávamos a todo o custo. Ainda foi ao médico, mas, numa altura em que
eu estava fora, ela sentiu-se pior e foram as vizinhas que a levaram para o
Hospital de Santa Maria, onde ficou internada com o nome falso de Maria
Fernanda Pais Damião. No outro dia, quando cheguei a casa, vi logo que tinha
havido problemas, pois as vizinhas vieram ter comigo a dizer: – oh vizinho, a
sua mulher está pior. Percebi logo, pela cara delas, que o pior tinha
acontecido e que estavam apenas a preparar-me para me darem a notícia fatal.
Na verdade, no dia 18 de Abril de 1964 a Maria Albertina
faleceu com apenas 23 de idade, 22 dias depois de ter o filho e quando se
encontrava na clandestinidade”.
A notícia chega célere a Alpiarça. Forma-se, de imediato,
uma Comissão destinada a organizar e a custear o funeral e que é composta por:
- José Faustino Rodrigues Pinhão, Alcindio Pinhão, Olímpio Francisco Oliveira,
Rui Batista Feliciano “o Rui Balsa”, Jerónimo Nazaré e António Conceição Jorge.
Foi através do esforço desta comissão, e de mais alguns elementos, que
percorreram as propriedades rurais e os estabelecimentos comerciais e
industriais, que se obtiveram os fundos para a transladação do corpo de Lisboa
para Alpiarça e se conseguiu a mobilização popular para estar presente no
funeral, pois todos os estabelecimentos comerciais fecharam nessa ocasião.
No dia 23 de Abril, Alpiarça ficou em “estado de sítio” com
a realização do funeral. Uma multidão imensa encheu por completo a Rua do
Casalinho até ao cemitério, controlada de perto por um enorme contingente
policial onde não faltavam os elementos da PIDE. A GNR chega a entrar no
cemitério, espancando aqueles que ousavam lançar palavras de ordem contra o
regímen político que governava o país. Algumas das imagens do funeral haveriam
de ficar registadas em fotografias tiradas por um fotógrafo que foi convidado
para o efeito por Natalino Paciência Andrade.
O Chefe de Brigada, que dirigia o posto da PIDE do
Entroncamento e que estava presente, descreve no seu relatório o que se passou:
“O féretro, procedido por duas alas de mulheres, dirigidas pela comissão que
lhes ia dando instruções, e que ao mesmo tempo regulava o trânsito, era
acompanhado por mais de 2.000 pessoas, sem que muitas delas conhecessem a
falecida ou os seus familiares. À porta do cemitério, o irmão da falecida,
Fernando Agostinho Sabino, leu uma carta que dizem ter sido escrita pelo Manuel
Mendes Colhe e onde afirmava a falta de assistência dispensada no Hospital ao
saberem que a doente vivia na clandestinidade. Antes da leitura da carta,
António da Conceição Jorge fez uma alocução acerca da falecida. Suspeita-se que
a carta referida não seja do Colhe mas sim do António da Conceição Jorge, que
enviou também a notícia do funeral para o jornal República que ultimamente tem
estado bastante activo… Embora todos os elementos da citada comissão sejam
elementos suspeitos de pertencerem ao p.c.p. e tenham cadastro nesta Polícia
por actividades contra a segurança do Estado, há que destacar o José Faustino
Rodrigues Pinhão, que foi quem recebeu o telefonema a comunicar o falecimento
da Maria Albertina e organizou a Comissão, revelando-se mais uma vez o mentor
das actividades subversivas de Alpiarça e Olímpio Oliveira, elemento que,
segundo consta, recebe os fundos para o partido e que é para o efeito procurado
na sua oficina, aos Sábados, por muitas mulheres do campo, entre elas Adelina
Arranzeiro Calarrão, casada com João Cravina Isidoro, motorista dos “Claras” e
também já referenciado como suspeito de actividades subversivas. O Olímpio sai
com frequência, ausentando-se por períodos de 3 e 4 dias, desconhecendo-se para
onde se desloca”.
Eu ia a pé para os Patudos onde uma multidão esperava o
funeral – diz António Conceição Jorge. De carro, em sentido contrário,
encontrei o Dr. Hermínio, que vinha da Instituição José Relvas, onde era o
Presidente. Quando me vê, pára o carro e diz-me: “Volta para trás António
Jorge, tu és muito emocional e depois dizes coisas que te poderão trazer
problemas”.
Continuei o meu caminho e esperei, no meio daquela multidão,
que chegasse o caixão.
Depois viemos todos a pé até ao cemitério, lembro-me que
vinha ladeado pelo Zé Pinhão e pelo Olímpio de Oliveira. Quando o funeral
chegou ao cemitério vi alguns carros da PIDE, onde conheci o Capitão Inspector
Porto Duarte, os chefes de brigada José Gonçalves e Gouveia, “tipos” que eu nem
podia ver à minha frente, pois já me tinham feito a “vida negra” em
interrogatórios. Dirigi-me ao Inspector:- Vocês não são os responsáveis
directos, mas indirectamente o que aconteceu à Maria Albertina é da vossa responsabilidade.
Enquanto a ditadura se mantiver, casos como este, continuarão.
Sentia-me muito emocionado e há coisas que não me faziam
calar. Esta era uma delas.
Então dirigi-me à multidão (eram talvez mais de 5.000
pessoas), empurrado por alguns acompanhantes e sentindo que ao menor atrito
haveria problemas graves entre a PIDE, GNR e a população: “Amigos! Por favor
curvemo-nos perante este caixão e esta desgraça. Peço-vos que vão para casa em
sinal de respeito pela memória da falecida.
O resto do funeral decorreu num silêncio impressionante. No
fim, as pessoas dispersaram sem uma palavra, não dando motivos para qualquer
prisão ou violência”.
O funeral de Maria Albertina Sabino foi, na realidade, um dos momentos políticos que marcou o ano de 1964 e que iria trazer consequências nefastas para alguns dos intervenientes nesse acontecimento, como é o caso de Fernando Vieira Pires “o Setenta”, que é detido no dia 29 de Maio, sendo libertado a 24 de Julho; Fernando Agostinho Sabino “o Carqueja”, irmão da falecida, que é detido no dia 6 de Junho, só sendo libertado a 28 de Setembro de 1964; Alcindio e José Pinhão, ambos pertencentes à comissão que organizou o cortejo fúnebre, o último detido a 29 de Maio e o irmão detido a 6 de Junho, tendo sido ambos libertados a 24 de Julho; Jerónimo Nazaré, que fez também parte da comissão e que seria detido no dia 2 de Julho e libertado a 3 de Agosto. Escapou momentaneamente o Olímpio Oliveira, o Rui Balsa e o António Jorge. Este último haveria de cair nas mãos da PIDE pouco tempo depois.
Bibliografia consultada: Pais, José João, Gente de Outro Ver, edição de autor, 2005."
Sem comentários:
Enviar um comentário