[Cipriano Dourado]

[Cipriano Dourado]
[Plantadora de Arroz, 1954] [Cipriano Dourado (1921-1981)]

segunda-feira, 5 de junho de 2017

[1605.] LAURA LOPES [I]

* FOLHAS SOLTAS DE UMA VIDA. MEMÓRIAS DE UMA MULHER DO SÉCULO XX || 2017 *

[Edições Colibri || 2017]

Livro de memórias, de histórias e de História da autoria de Laura Lopes, "a rapariga dos cabelos ruivos", nascida em 1923, numa família operária.

História e histórias de uma vida militante de décadas, Laura Lopes começa por relembrar a Lisboa dos desfavorecidos e dos operários nas décadas de 20 e 30 e o quão difícil era para uma rapariga oriunda das classes trabalhadoras construir um percurso escolar, sendo vítima de "discriminação social" ao frequentar a escola primária da Câmara e, depois, no Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, onde lhe foi retirada a isenção de propinas a que tinha direito por opinar contra a guerra e em defesa da paz. Tinha, então, onze anos!

Lutadora e persistente, trabalhou como peleira na Rua do Carmo e, depois, numa companhia de seguros inglesa para prosseguir os estudos, tendo frequentado à noite a Escola Comercial Patrício Prazeres e, em 1948, entrou na Faculdade de Direito onde talvez fosse "a única aluna proveniente da classe operária". Aí, por intermédio de Ovídio Martins, antifascista e poeta caboverdeano, iniciou a luta de décadas contra o regime fascista e se tornou numa empenhada lutadora pela Paz. 

Aderiu ao MUD-Juvenil, tornou-se, em 1949, militante clandestina do Partido Comunista, participou nas principais iniciativas, nacionais e internacionais, em defesa da Paz mundial, esteve na constituição do movimento Democrático das Mulheres e, por este seu relato, perpassam episódios das muitas vidas com que se foi cruzando:  Alcina Bastos, Ângelo Caldeira Rodrigues, Ângelo Veloso, Belmira Cruz, Blanqui Teixeira, Carlos Aboim Inglês, Carlos Brito, Carlos Costa, através de quem conheceu Maria Machado, então a viver num pequeno quarto da Maguidal, "uma alfaiataria de antifascistas situada num 3.º andar da Rua da Palma", Duarte Vidal, Francisco Martins Rodrigues, Graça Mexia, Guilherme da Costa Carvalho, Helena Neves, Humberto Soeiro, Ilídio Esteves, Isabel Pato, João Pulido Valente, José Dias Coelho,  Lino Lima, Manuel Pedro, Manuela Bernardino, Maria Barreira, Maria das Dores Cabrita, Maria Isabel Aboim Inglês, Maria Lamas, Maria Teixeira, Maria Teresa Horta, Olívia Maria, Ovídio Martins, Rosalina Pinho, Ruy Luís  Gomes, Silas Cerqueira, Vasco Cabral, Virgínia Moura, os gémeos Eugénio e Manuel Ruivo... entre muitos outros nomes, não se coibindo de tecer juízos críticos sobre alguns destes companheiros de percurso e de vida.

De Olívia Maria, "presa mais de oito anos e seis anos na clandestinidade" e com quem passou muitos serões na Graça, estando o marido [José Carlos] a cumprir pesada pena de prisão, dá uma descrição pormenorizada devido ao registo, então feito, da sua história em dez folhas de bloco escritas de ambos os lados e de que Laura Lopes se socorreu para a descrever neste livro.

De Alcina Bastos "mulher vertical, antifascista desde sempre", nome pouco valorizado e reconhecido, lembra a "mulher valorosa (...), simples, modesta e de uma enorme integridade moral e verticalidade nas suas atitudes, na sua maneira de estar na vida" e que "nunca vergou a cabeça perante nada nem ninguém, em circunstâncias penosas da sua sua não pactuou com o fascismo, nunca recebeu benesses, sempre as recusou": "uma voz sempre a soar na ocasião necessária - mas sem alardes."

De Guilherme da Costa Carvalho, transcreve o postal de 18/07/1972, com carimbo de Paris, que este lhe mandou a  pedir para informar o cunhado Ilídio Esteves que "tudo me tem corrido bem", "que tenho pensado nele com o afecto e o respeito que mutuamente nos une, que não o esqueço", embora refira que, quanto ao seu estado de saúde, "o mal é mais extenso do que supunha pois são os dois pulmões que estão igualmente atingidos, e eu pensava ser só o direito. Tenhamos paciência."

Do seu percurso de Advogada, sobressai as intervenções no âmbito Direito de Família, Direito Criminal e de defesa de presos políticos, sendo que "os contactos com as polícias eram desgastantes [...] exigindo serenidade, espírito de observação, rapidez de reflexos mentais, memorização, domínio total sobre si próprio". Participou em Novembro de 1972, no 1.º Congresso Nacional dos Advogados, e manteve colaboração na imprensa, com textos jurídicos: assinou, como Dra. Luz Pinheiro, a rubrica "A Mulher e o Direito" no Jornal Magazine da Mulher, dirigido por Lília da Fonseca; e manteve na revista Modas e Bordados e, posteriormente, na revista Mulheres, a secção "A mulher e a lei", com alguns percalços nestas duas últimas publicações. Colaborou ainda no Diário de Lisboa e no Notícias da Amadora.

Mas Laura Lopes foi também professora, tendo sido afastada do ensino por motivos políticos em 1966, quando leccionava na Escola Comercial e Industrial de Emídio Navarro. Reintegrada no ensino depois de 1974, após um processo atribulado, acabaria por se aposentar enquanto professora, aos 70 anos.

No entanto, e como não podia deixar de ser, parte substancial do livro é dedicado à sua intervenção nas organizações, nacionais e internacionais, em defesa da Paz, disso dando pormenorizado relato baseado em avultada documentação. Militante convicta da Paz, a sua caminhada iniciou-se em 9 de Abril de 1949 quando, numa iniciativa do MUD Juvenil, se decidiu colocar junto ao Monumento dos Mortos da Grande Guerra um pequeno cartaz com a frase "A Juventude luta pela Paz": Laura Lopes foi a escolhida para representar a Faculdade de Direito, tendo sido a única a concretizar o decidido entre os jovens de todas as universidades.

Depois, em 1950, interveio na recolha de assinaturas a favor do Apelo de Estocolmo; representou o Portugal antifascista nas reuniões internacionais da Paz, com destaque para o Congresso dos Povos para a Paz, realizado em Dezembro de 1952, em Viena, onde participou ao lado de Manuel Valadares e de Vasco Cabral, e esteve na fundação do Conselho Português para a Paz e Cooperação, este constituído já depois de 1974.

Através dos movimentos da e pela Paz, é dada atenção, até com alguma minúcia, ao percurso de Maria Lamas, e a Manuel Valadares, a Vasco Cabral, a Silas Cerqueira e a Vasco de Magalhães Vilhena, entre outros membros de delegações portuguesas a reuniões internacionais.

Laura Lopes, que nunca teve televisão, deixa-nos um testemunho que não é neutro, nem isso ela pretende, que merece ser lido enquanto relato de vida de uma mulher que, desde muito nova, se assumiu como cidadã do seu país e do mundo e enquanto documento histórico de parte do século XX, sobretudo da sua segunda metade. 




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