* HELENA PATO || A NOITE MAIS LONGA DE TODAS AS NOITES (1926 - 1974) *
Na apresentação do livro na Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, com Helena Pato, Manuela Espírito Santo, Júlio Machado Vaz, Fernando Mão de Ferro e uma plateia atenta e solidária que enchia a sala:
Decorridos 44 anos desde 25 de Abril de 1974, há a incómoda sensação, para não dizer certeza, que não se soube, ou não se quis, ainda, honrar devidamente a memória de todos os que, entre 1926 e 1974, combateram a Ditadura, muitos dos quais “viram as suas vidas aniquiladas para sempre” [p. 238], e lutaram pela Liberdade.
Por outro lado, não se procurou, de forma sistemática, valorizar a memória daqueles que lutaram e resistiram, sob as mais diversas formas, dando-lhes voz, preservando os seus testemunhos e publicitando-os.
Eis uma das razões porque A noite mais longa de todas as noites (1926 - 1974), de Helena Pato merece reflexão detalhada: fugindo à tentação autobiográfica, apesar das vivências pessoais que o suportam, ele devolve-nos a memória de um tempo prolongado de luta numa sociedade dominada pela miséria e conservadorismo retrógrado e subjugada pelo medo e repressão, incorporando na sua narrativa aqueles e aquelas que a foram acompanhando desde que, ainda menina, se mudou da Bairrada para Lisboa a seguir ao fim da Segunda Guerra Mundial.
Há quem duvide. Há quem desconheça. Há quem tenha esquecido, mas “ainda vamos a tempo de lhes contarmos, na primeira pessoa, aquilo por que muitos de nós passaram” [p. 11]. Simultaneamente, uma obrigação para com os mais novos, os jovens; por outro, um contributo para a “História da noite mais longa de todas as noites” [p. 11] através de momentos da Resistência e Oposição à ditadura fascista que perdurou até 1974.
Com “uma escrita luminosa”, como Teresa Horta se lhe refere, entrecruzando memórias pessoais com a memória colectiva da luta contra o fascismo, Helena Pato descreve, em sessenta capítulos, o país atrasado e pobre, dominado pelo medo da PIDE, mas onde sobressai a capacidade de resistência daqueles que foram dizendo NÃO, as solidariedades que só o combate político comportava, as pequenas alegrias do dia-a-dia, o saborear de cada momento, retirando daquele a felicidade improvável: “dias em que, apesar de tudo isso, fomos incomensuravelmente felizes” [p. 240].
Está-se perante um livro depurado de uma Cidadã e Resistente Antifascista, sem se enveredar por quaisquer “menções «gratuitas» de carácter estritamente pessoal” [p. 12]. Um testemunho “coerente”, “lúcido” e “corajoso”, como evidencia Maria Teresa Horta no texto inicial, onde o leitor acompanha a progressiva consciencialização das desigualdades sociais, até à intervenção associativa e política a partir de 1956, ano da entrada na Faculdade de Ciências, e que culmina no 25 de Abril de 1974.
Se o “MEDO”, “dezenas de anos a ter medos” [p. 12], “um medo latente, que atravessava toda a sociedade”, e a PIDE, ambas palavras com “quatro letras que marcaram o passado dos portugueses” [p. 13], cruzam a narrativa, “também com quatro letras se escreve LUTA” e “a luta exigia sempre superar o medo e fazer face à PIDE” [p. 13]. Não um Medo, mas vários Medos: da PIDE; das denúncias; de se ser escutado; da prisão, associada sempre à tortura e ao medo de falar - “houve companheiros que fraquejaram nos interrogatórios da Polícia” [p. 61]; dos “bufos”.
“Eles estavam entre nós” [p. 14]: nos cafés; nas tabernas; ao pé e, parados, ao longe; nas paragens do autocarro; nos transportes; ao balcão de qualquer estabelecimento; num escritório ou sala de espera; entre os professores, sem que nada o fizesse prever.
Um episódio. quando Helena Pato consultou, na sequência do 25 de Abril, o seu dossiê que constava na PIDE/DGS, deparou-se com um cartão-de-visita de “um mestre, um poço de saber, uma doçura de criatura, um professor com quem trocava entusiasticamente ideias”, “um intelectual inteligente e culto, um homem bem-sucedido na vida, profissionalmente prestigiado, que não dava sinais de ser fascista ou, sequer, um situacionista”, dirigido a Silva Pais: “Muito obrigado, meu caro amigo, pelo favor prestado. Conforme prometido, seguem junto as informações que consegui recolher acerca da minha colega Maria Helena Pato” [pp. 227-228].
Mas também há o “situacionista com carácter”, neste caso o Director da Escola Nuno Gonçalves: “«Maria Helena, eles quiseram impedir que a aceitasse aqui como professora, mas eu apenas recebo ordens do Sr. Ministro da Educação. Procure gostar e compreender estes rapazes que vão ser seus alunos e conte sempre comigo para a ajudar»” [p. 193].
E quando, certo dia, “eles” se deslocaram à Escola, para terem “um breve esclarecimento consigo durante o intervalo”, Xavier Roberto dirigiu-se à sala de aula e avisou Helena Pato: “disse-lhes que hoje a menina não tinha aulas. Safe-se, safe-se já desta zona… E informo-a de que um deles vive na General Roçadas, aqui em frente. Deu-me o braço e acompanhou-me até ao pátio. Surpreendeu-me com um beijo na testa e ficou a ver-me de longe” [p. 195].
Por isso, Helena Pato trata de reafirmar, mal o livro se desenrola, que “gosto de pessoas, aprecio-lhes a inteligência e exijo-lhes carácter” [p. 18].
“Eles” espiavam tudo e todos; escutavam os telefonemas; espiavam a correspondência; queriam saber o que se lia; com quem se falava: “Era com medo que eu acordava […] e era com medo que me deitava” [pp. 14-15]. Mas este MEDO que impregnava o quotidiano, não fazia com que se deixasse de lutar: “Não tínhamos recuo possível: lutar, lutar por todos os meios, em todas as frentes, lutar na esperança de que o regime teria um fim” [p. 161].
E assim, temos uma Helena Pato presente em muitas das lutas travadas a partir de 1957 (para não falar da petição, escrita aos oito anos e enviada ao Inspector Escolar, em defesa da sua Professora Primária, suspensa por a defender perante a prepotência da Directora – 30/10/1947): contra o Decreto-Lei 40.900, engrossando os milhares de estudantes que, de todo o país, se deslocaram à Assembleia Nacional para exigir a sua revogação [16/01/1957]; as campanhas eleitorais de Arlindo Vicente e Humberto Delgado [1958]; o 1.º de Maio de 1962, com os polícias, que “pareciam drogados”, a reprimir violentamente os manifestantes, tendo as algibeiras atulhadas de pimenta para afugentar os cavalos da GNR; a crise académica de 1962, iniciada com a proibição do dia do Estudante e que levou à prisão, em 10 de Maio, de 1200 estudantes que tinham ocupado a Cantina Universitária, sendo transportados em autocarros da Carris e as raparigas, em crescendo nas fileiras da Oposição, “metidas, como sardinhas em lata, nos calabouços do Governo Civil – umas vinte por cada cela” [p. 58]; a fuga e partida para o Exílio, por denúncia da militância do marido [1962]; a viagem de comboio com o alentejano António José Piteira Júnior; e o “Exílio no Feminino”, onde a resistência assumia novas formas, até porque, “por Paris, as limitações à acção política dos exilados eram enormes. A polícia francesa seguia todos os nossos passos e a qualquer momento podíamos ser postos na fronteira” [p. 79].
Em Paris, “nem livre, nem exilada” [p. 101], onde as dificuldades económicas foram muitas e os trabalhos duros, aprendeu com as divergências, dissidências e os conflitos, ainda que prevalecesse, sempre, a solidariedade entre os exilados; conviveu com intelectuais que ali tinham procurado refúgio, com destaque para Maria Lamas; conheceu os primeiros desertores e refractários da Guerra Colonial; desempenhou tarefas partidárias no âmbito do Partido Comunista, recolhendo assinaturas para abaixo-assinados a favor dos presos políticos ou participando no Fórum da Juventude de Moscovo, em 1964.
No regresso definitivo a Portugal, com o falecimento precoce de Alfredo Noales, com quem estava casada há menos de cinco anos, retomou a luta, envolvendo-se na primeira Comissão de Socorro aos Presos Políticos.
Presa em 14 de Junho de 1967, por incumprimento das regras de clandestinidade de quem a contactou, sofreu o isolamento e a tortura do sono: “mas foi em Caxias, aos vinte e muitos anos, que aprendi a deliciar-me com a observação de coisas insignificantes” [p. 133], numa busca incessante contra a solidão e procurando fugir “do que me deprimia ou de dar em doida”.
Na António Maria Cardoso, sujeita à tortura do sono, conseguiu arranjar um estratagema para “dormir” cinco segundos: “De olhos bem abertos, quando vinha em direcção à agente da PIDE […] mas adormecendo, logo que dava a volta, assim que lhe virava as costas e caminhava no sentido contrário. Seriam cinco segundos. Juro que adormecia de facto e que acordava no momento certo de me voltar de frente para a mesa e regressar” [p. 143].
E quando presa numa mesma cela com Lurdes, a Maria e o filho desta, que nem dois anos tinha e gritava o dia todo, “jamais dissemos a verdade, jamais quebrámos confidencialidades, jamais esclarecemos que actividades nos tinham levado, afinal, a Caxias. Andávamos de roda, guardando segredo do real motivo que ali nos conduzira: PCP uma, outra e outra, elas guardiãs corajosas das casas clandestinas e eu militante para o que desse e viesse e o partido quisesse” [p. 139].
Libertada ao fim de quase seis meses, sem acusação e sem nunca ter prestado quaisquer declarações, deu-se o regresso à luta, alimentada por encontros, piqueniques, convívios políticos, de forma a renovar “a energia revolucionária” que “nunca era um dado adquirido” [p. 128], envolvendo-se na construção do Movimento Democrático de Mulheres, em 1969 e, já professora, no Grupo de Estudos do Pessoal Docente (GEPDES).
Mas um pilar deste livro, a par do MEDO, do retrato de um país pobre de enorme rigidez moral, e da LUTA, consiste num aspecto muito pouco referenciado e, talvez, secundarizado por outros testemunhos de resistentes e da resistência e que lhe dá um carácter único: o nunca abdicar de viver, tanto quanto possível, “os anos de oiro da juventude, das lutas, das paixões, das tasquinhas, do jazz e do fado” [p. 20] e em que todas as alegrias, as amizades, os amores, a família e os filhos constituem parte integrante da luta.
As reuniões, as sessões no Cineclube Universitário, os concertos da Juventude Musical, a frequência da Casa dos Estudantes do Império, os livros proibidos adquiridos na Livraria Escolar Editora, as exposições, os sábados dançantes, os bailes mais privativos, a audição das novidades musicais, o Hot Club, o Clube Universitário de Jazz de Lisboa, os convívios entre amigos, em que as relações pré-matrimoniais começavam a fazer o seu caminho… Tudo isto também era LUTA!
Com Alfredo Noales, e apesar dos riscos e responsabilidades políticas, “vivíamos felizes, com a facilidade com que se era feliz aos vinte e poucos anos” [p. 62], “com muito tempo e pouco dinheiro” [p. 63], em que a casa “era um espaço de alegria e de paz”, “com a opção consciente por caminhos mais ou menos clandestinos da luta antifascista” [p. 64].
Esta curta, mas intensa, felicidade, acabou, primeiro, pela traição que a desapossou “de uma parte sagrada da nossa juventude”: “O outro, de quem tanto quis esquecer o nome, o antifascista que traiu, talvez se tenha alegrado com a Revolução, mas não duvido que passou por um sofrimento prolongado” [p. 65].
Anos depois, a vida entregar-lhe-ia “um homem de eleição, bom e lúcido” [p. 166], há dias desaparecido, mas jamais esquecido: apesar de virada a página, “ficámos amigos, partilhando as grandes alegrias, as agruras da vida, conselhos e os nossos filhos” e em que “a luta pela preservação da memória do fascismo, pela Democracia e pelo socialismo, unir-nos-á para sempre” [p. 236].
Tal como Helena Pato tão bem nos descreve, a luta antifascista fez-se de dor, sofrimento e militância - “O que faria eu, a pedido de um camarada clandestino? Tudo” [p. 175] -, mas também de solidariedades, de amizades que marcaram cada tempo e ficaram para sempre, e de alegrias: pequenas e grandes: “Avançar na caminhada, com alegria e (sempre) a esperança de que o dia da vitória havia de chegar. Essa era a minha disposição” [p. 160].
E chegou. Com o 25 de Abril de 1974, o qual nunca teria chegado sem a luta, a dedicação, a abnegação, os sacrifícios de muitos e muitas resistentes como Helena Pato.
Por isso mesmo, “As vítimas (todas) merecem que lembremos simbolicamente o que a Pátria lhes deve. A História de Portugal tem que acolher com orgulho a memória dos combatentes pela Liberdade” [p. 239].
[João Esteves]
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