* DOMICÍLIA COSTA *
Abril - Vivências na clandestinidade
Edição: Domicília Costa || Março de 2020
Viver, crescer e militar, em família, na clandestinidade!
"Abril - Vivências na clandestinidade", livro que esteve para ser publicado em 2004 e só o foi em 2020, como Edição de Autora, é uma extraordinária e pormenorizada descrição no feminino da resistência clandestina do Partido Comunista pelos olhos de uma criança que foi crescendo e se tornou precocemente adulta, sem poder ter o percurso escolar habitual e conviver com outros miúdos ou adolescentes. Um relato familiar sem mágoas, "para que a memória se não apague", onde constantes mudanças de casa, intercaladas com alugueres de quartos, decorrem das sucessivas responsabilidades partidárias, assumidas e partilhadas, primeiro pelos pais e, a pouco e pouco, pela filha.
Neste rememorar de Domicília Costa sobressai o quotidiano, com regras espartanas, tornando-se testemunho paradigmático quanto ao funcionamento das casas clandestinas e ao seu número, sendo que muitas, em número significativo, como prova este roteiro, nunca foram detectadas pela PIDE e, por isso, continuam omissas da historiografia antifascista e na História das Oposições.
Devido à militância comunista dos pais, sendo que a do pai datava, pelo menos, de 1944, quando participou nas greves de Alhandra e cuja vida na clandestinidade se prolongou por 21 anos consecutivos (1953-1974), Domicília Costa tornou-se a mais jovem funcionária do Partido Comunista, com apenas treze anos, nunca tendo sido, tal como os progenitores, presa pela PIDE.
Entre 1949, quando tinha três anos, e 1970, altura em que se exilou em Paris, com 24 anos, Domicília Costa viveu em quase duas dúzias de casas semiclandestinas e clandestinas do Partido Comunista: 19 até 1966, juntamente com os pais, e 4 sob sua responsabilidade e do "companheiro" que acompanhava. Isto sem contar com os quartos que, quando se impunha fazer um corte ou enquanto se procedia a novo aluguer, eram ocupados temporariamente.
Filha de Antero da Costa (06/06/1919-11/05/1999) e de Maria Correia dos Santos (03/04/1921-06/08/2000), natural das Cardosas, Arruda dos Vinhos, Domicília Maria Correia da Costa nasceu em Alhandra, em 25 de Janeiro de 1946.
Em finais de 1949, a família foi viver para o Sobralinho, onde a casa passou a servir como "ponto de apoio" a um funcionário do Partido Comunista.
Domicília Costa iniciou, então, um percurso invulgar de mudança constante de residência e de localidade, primeiro num regime semiclandestino e, a partir de 1953, numa clandestinidade total: Alverca (Rua Joaquim Sabino de Faria, 19A - 1952); Alverca (1952-1953); Azinhaga das Lajes, no Lumiar (1953); Buraca (Rua 8, porta HB); Porto (Rua Matias de Albuquerque, 248); Leça da Palmeira; Matosinhos (Rua D. João I); Montijo (Bairro do Afonsoeiro - 1955); Vila Nova de Caparica (Azinhaga da Rosa, Vila Simões - 1955); Cova da Piedade (Rua EduardoTavares, lote 8 – 1957); Almada (esquina da Rua Diogo Paiva de Andrade com a Rua Dom Álvaro Abranches da Câmara – 1959); Lisboa (Calçada de Santo Amaro, 136, 3 ° dto – 1959); Lisboa (Rua do Giestal - 1960); Porto (Rua da Friagem, actual Rua Arquitecto Marques da Silva – 1961); Porto (Rua Freire de Andrade, 53 – 1961); Areosa (1961); Venda Nova (Rio Tinto – 1962); Ermesinde (1963); Baixa da Banheira (1966); Paio Pires; Termas de S. Pedro do Sul (1967); Viseu (1967).
Por os pais terem a seu cargo uma das tipografias do Partido Comunista ou as suas acomodações servirem para reuniões, apoio a funcionários clandestinos, ao Comité Central ou à redacção do jornal Avante!, qualquer percalço, nomeadamente prisões ou ameaça de outros perigos, como pessoas suspeitas a rodearem a zona, obrigava a novas deslocações, fazendo com que não pudesse frequentar a escola, a não ser de forma intercalada: "[...] quando se mudava de casa nunca se dizia a verdadeira localidade para onde íamos e, do mesmo modo, nunca se dizia com verdade de onde éramos e de onde vínhamos. Tudo para evitarmos dar pistas à PIDE que nos identificassem e localizassem" [p. 60].
Em resulto destas suas vivências, Domicília Costa conviveu, desde muito nova, com presos, incluindo tarrafalistas, e contactou com uma plêiade invulgar de dirigentes políticos, cujos laços afectivos, com raras excepções, perduraram no tempo: Afonso Gregório; Américo Gonçalves de Sousa, Américo Leal, António Dias Lourenço, Blanqui Teixeira, Cândida Ventura (com a filha pequenita), Deolinda Franco, Fernanda Paiva Tomás, Francisco Canais Rocha, Guilherme da Costa Carvalho, Joaquim Gomes, Joaquim Marinho, Joaquim Pires Jorge, José Gregório, já muitíssimo doente e debilitado, José Lopes Baptista, José Ralha, José Vitoriano, Júlio Fogaça, Manuel da Silva, Manuel Guedes, Maria da Piedade Gomes, Octávio Pato, Pedro Soares, Sérgio Vilarigues, Severiano Falcão... Por vezes, aquelas casas serviram de abrigo a militantes comunistas evadidos de prisões, incluindo Álvaro Cunhal, tendo a família estado envolvida nos preparativos da fuga de Peniche em Janeiro de 1960.
A par do pai, a mãe também fazia a entrega ou distribuição do material impresso em casa, utilizando os transportes públicos, e a filha ajudava-os na impressão de tarjetas, manifestos e jornais clandestinos (Avante!, O Camponês, O Corticeiro…).
Com onze anos, começou a colaborar em A Voz das Camaradas, folha feita e dirigida às mulheres das casas do Partido Comunista, assinando com o nome de "Daniela". Também a mãe assinou na imprensa 3 Páginas e A Voz das Camaradas, usando o pseudónimo Amélia.
Aos treze anos, em meados de 1959, Domicília Costa recebeu a proposta, via Blanqui Teixeira, de se tornar funcionária do Partido Comunista, recebendo o salário por inteiro e pagando cotas.
Depois da vida clandestina com os pais, foi-lhe proposto montar uma casa com outro camarada. Tinha, então, 20 anos. Em meados de 1966, Domicília Costa instalou-se, com o "companheiro" Silva Marques (José Augusto da Silva Marques, 1938-2016), na Baixa da Banheira. Antero e Maria Correia dos Santos mantiveram-se na zona do Porto depois de saírem de Ermesinde, enquanto a filha se deslocou para o Sul, mantendo, por regras da clandestinidade, apenas contacto através de troca de correspondência.
Na sequência da invasão da Checoslováquia e do agravamento de divergências entre Silva Marques e a direcção do Partido Comunista, Domicília Costa, que tinha acompanhado algumas situações e apoiado aquele, perdeu confiança nas orientações da Direcção. Pediu, então, para se reencontrar com os pais, o que sucedeu em Abril de 1970, informando-os da sua situação e que acompanharia Silva Marques no exilio, saindo do país nesse mesmo mês, radicando-se em Paris, onde conheceu Santos Júnior, exilado político com quem casou.
Ao fim de dezassete anos de clandestinidade e de sete anos de militância reconhecida enquanto funcionária, Domicília Costa saía do Partido Comunista. Com o marido, veio a Portugal em 1972, onde visitou e restabeleceu laços com familiares, contactando, ainda, com militantes do Partido Comunista, entre os quais Guilherme da Costa Carvalho, que conhecera bem na clandestinidade, e Virgínia Moura.
Após o 25 de Abril, pediu, tal como Santos Júnior, a refiliação naquele, regressando definitivamente a Portugal em Fevereiro de 1975. Em 1991, voltaria a afastar-se do Partido Comunista, demitindo-se na sequência dos acontecimentos de Agosto na União Soviética.
Embora desfiliada, continuou a assumir-se como comunista e a colaborar em algumas iniciativas. Em 2015, com 69 anos seria eleita deputada à Assembleia da República nas listas do Bloco de Esquerda, pelo Círculo do Porto, renunciando dois anos depois.
Um percurso único, invulgar e corajoso, num país em que a repressão fazia parte do dia a dia, e que merece sair do anonimato. "Para que a memória se não apague"!
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