[Cipriano Dourado]

[Cipriano Dourado]
[Plantadora de Arroz, 1954] [Cipriano Dourado (1921-1981)]

sábado, 17 de setembro de 2022

[2893.] CRÓNICA FEMINISTA || "JORNAL DA MULHER" - 20/09/1906

 * CRÓNICA FEMINISTA *

"Jornal da Mulher" || 20/09/1906

Em 20 de Setembro de 1906, o “Jornal da Mulher” (O Mundo) analisa casos noticiados de aborto na “Crónica feminista - Os crimes da actualidade”:

«Crónica feminista - Os crimes da actualidade

Dois acontecimentos sensacionais têm perturbado ultimamente o espírito de ordinário pacato do povo lisboeta e tornando-se assunto obrigatório dos artigos violentos com que a imprensa portuguesa precisa, de quando em quando, cortar a calma serenidade a que a acorrenta um meio estéril em factos e impressões de interesse público.

Referimo-nos à condenação dos marinheiros julgados cruelmente em conselho de guerra, e aos recentes crimes de aborto, tratados pormenorizadamente pelas nossas folhas diárias.

Dois acontecimentos sensacionais, repetimos, e ambos devendo ser do interesse do domínio feminista, ambos pedindo à pena imparcial e ao sentimento carinhoso da mulher portuguesa um grito de revolta e um impulso de piedade. Apenas do último nos ocuparemos hoje, por ser o que menos tem valido as deduções lógicas, a justa defesa e o desassombro destemido que devem presidir, no tribunal da imprensa, ao julgamento de todos os factos que se liguem com a moral dos povos e com o aperfeiçoamento das sociedades.

Não queremos que pensem, nem em sonhos, que vamos levantar hoje aqui no “Jornal da Mulher”, um tribunal de defesa de todos os crimes que sejam cometidos pelo elemento feminino; não julguem aqueles que nos condenam sem nos conhecerem nem nos poderem compreender, que as feministas, “na sua cega orientação de alterarem os costumes e de corromperem as leis”, vêm contribuir para aumentar essa longa lista criminal que é uma vergonha e um luto para todos os corações que são portugueses.

Somos portugueses, e se nos assiste o direito de amar este deslumbrante sol de oiro e este lindo céu de opalas, que tem sido o ambiente amorável duma raça que a glória eternizou nas páginas da história da humanidade, temos também o triste dever de nos afligirmos com as desgraças que mancham a bandeira nacional e de curvarmos a fronte envergonhada perante os crimes da nossa sociedade.

Esses crimes da actualidade que têm sobressaltado todos, que a todos têm enchido de surpresa e pavor, encaramo-la nós, feministas, serenamente, com a triste filosofia que nos vem do conhecimento dum meio social que temos autopsiado suficientemente para podermos emitir dele um diagnóstico seguro.

Que se pode esperar – digam-nos – dum meio em que a ignorância inconsciente da mulher é uma lei imposta pelos nossos preconceitos sociais, em que o trabalho dela pessimamente remunerado a lança numa situação de miséria e de desalento incapaz de poder reagir contra a luta brutal da vida, em que, finalmente, não faltam “abutres” de toda a casta social e com toda a escola de depravação moral para as arrastarem a preferir a desonra e a lama ao frio e à fome?

Desenganem-se: enquanto houver uma boca que peça pão, um cérebro mergulhado nas trevas e uma consciência revoltada contra a iniquidade cínica das sociedades, haverá sempre grades de ferro, guardando prisões imundas, espreitadas por olhos cheios de febre e de ódio.

Têm sido grandes, assombrosos mesmo, os progressos que a antropologia criminal tem feito nos últimos tempos, revolucionando todo o mundo científico e elevando a um pedestal glorioso a culta e simpática Itália de onde tem procedido com mais actividade e mais amor.

Hoje a ciência já não chama ao acusado um criminoso, classifica-o de um doente, duma vítima do seu próprio organismo físico.

Manda que a humanidade lhe abra hospitais misericordiosos e que lhe feche essas espeluncas bárbaras e assassinas onde o costuma encerrar.

Terá, porém, esta concepção, já bastante avançada, atingido o auge triunfante e definitivo à face da verdade científica? Não nos parece.

O homem é, incontestavelmente, um produto do meio em que vive e da Sociedade em que actua. Admitido este axioma, porque é que não hão-de ir buscar a esse meio e a essa sociedade as não pouco numerosas responsabilidades que lhes cabem em muitos crimes que pratica, sem consciência, sem vontade reflectida, muitas vezes quase como um autómato movido por um impulso estranho e maldito?

Escutem-nos bem as mulheres portuguesas para quem a compreensão e o sentimento não são palavras mortas.

Sabem quem são hoje as acusadas destes crimes repelentes?

Mulheres caídas no medonho caos da miséria para quem o matar a fome é uma lei imperiosa e ao mesmo tempo os meios de o poder fazer um crime odioso.

Mulheres a quem negaram, desde a nascença, a luz do espírito, as alegrias todas da existência, que foram criadas sem uma lição ou um exemplo moral, e sem uma carícia de afecto. E é a criaturas destas que juntam ainda a todo este rosário de amarguras, a surda revolta de se verem seduzidas com falsas promessas para depois serem abandonadas com desprezo e zombaria, - é a criaturas destas que recriminam severamente por não compreenderem os sublimes deveres da maternidade! Nem que essa maternidade não lhes  esteja sempre a lembrar o fardo com que é atormentada ainda mais a sua miséria e a traição com que escarraram os seus [?] de virgens.

O crime porque elas agora vão responder, custou pelo menos dezenas de crimes à sociedade que agora as condena. Não são criminosas dessa sociedade são vítimas dela.

Se a justiça fosse feita, se as responsabilidades se pedissem a todos aqueles que as deviam prestar, quantos condes, marqueses, duques, quantos desumanos disfarçados com um brasão de falsa nobreza – porque a única, a verdadeira é a do trabalho – se teriam hoje que sentar, no banco dos réus, ao lado dos mais desgraçados criminosos.

[...]»

[O Mundo, 20/09/1906] 

[O Mundo || 20/09/1906]

[João Esteves]

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