[Cipriano Dourado]

[Cipriano Dourado]
[Plantadora de Arroz, 1954] [Cipriano Dourado (1921-1981)]

domingo, 27 de fevereiro de 2011

[0328.] CAROLINA BEATRIZ ÂNGELO || CARTA A ANA DE CASTRO OSÓRIO (02/07/1911)

* CARTA DE CAROLINA BEATRIZ ÂNGELO PARA ANA DE CASTRO OSÓRIO || 2 DE JULHO DE 1911 *

"Lx.ª 2-7-911
Querida Amiga

Pela sua carta vejo que fizeram uma bela viagem e chegaram bem, o que deveras me alegra.

Seu Papá esteve um dia destes no meu consultório e pareceu-me m.to bom. Na última vez que vi sua Mamã pareceu-me que estava m.to razoavel.te de saúde, bem que queixosa e com mtas saudades, é claro. Tenho agora tido muitíssimo que fazer e por isso não a tenho visto tanto quanto desejaria mas deixei-lhe um bilhete com recomendação expressa de me chamar logo que de mim careça.

A boa orientação do nosso governo tratando os conspiradores com abraços e beijos fez com que agora estes nos apoquentem com as suas proezas na fronteira espanhola. Além das consequências que podem ser sérias, por causa dum conflito com a antipática e pulha Espanha o resultado imediato é a agitação em que tudo anda, as vidas que pode custar e a paralisação do comércio. Francamente, por cá ninguém está sossegado e dá-se como inevitável a invasão. Verdade seja que m.tas tropas e material de guerra, carbonários e voluntários têm ido para o norte mas quanto não custará tudo isto ao nosso desgraçado país? Quem sabe se eu ainda irei também até à fronteira. Eu e Cabette [Carolina Beatriz Ângelo refere-se à médica Adelaide Cabete, com quem tinha militado na Liga Republicana. Integravam ambas a loja maçónica Humanidade] estamos habilitando as irmãs da lojHumanidade para poderem prestar alguns serviços de enfermagem se precisos forem.

Agora a respeito da nossa Associação: olhe que já tenho tido dissabores mas que fazer-lhes? Vamos elaborar uma representação ao parlamento para ver se os homens se movem. Lá tem ido todos os dias comissões da Ass. Fui assistir à abertura das Constituintes e digo-lhe que nunca em minha vida senti tamanha comoção. Sim, o que eu senti, o que todos sentimos só se experimenta uma vez na vida. Chorei, chorei e q.do, envergonhada, limpava furtiva.te as lágrimas reparei que a toda a gente, homens e mulheres, sucedia o mesmo. Todos choravam e se abraçavam enternecidamente. Por bastante tempo parecia que todos estavam delirantes, braços que se agitavam, vivas, palmas, lenços a acenarem, punhados de flores lançadas sobre os deputados, enfim, uma loucura. E o nosso Afonso Costa lá foi também, m.to fraco e ainda doente mas não faltou! Há dias eu e uma Comissão da Ass. fomos cumprimentá-lo, levando-lhe um lindo ramo de cravos brancos com fitas brancas e douradas. Recebeu-nos com m.ta amabilidade, conversou comigo agradecendo o ter votado nele pois, apesar de tão doente, sabe tudo quanto se passou. Denominou-me uma sufragista prática e pensa que as Constituintes não poderão deixar de conceder o voto às mulheres, restritamente, é claro. Tem já elaborada para apresentar ao Parlamento a lei sobre os direitos civis da mulher que, diz ele, completa o ciclo formado pela do divórcio e da família.

Olhe, sabe? Quem me tem desgostado e arreliado m.to é a Maria Feio. É insuportável tal mulher. Não conhecia o Afonso Costa e eu cai na asneira de a deixar fazer parte da comissão. Pois no dia seguinte apresentou-se em casa do homem, ainda tão doente, e creio que o maçou durante horas a contar-lhe a sua vida e a pedir-lhe o seu apoio moral não sei para que fantasias. Ora calcule que disparate! Mas ainda há mais: a Natividade Ximenes [Maria da Natividade de Queirós Ximenes tinha militado na Liga e integrado a sua comissão de propaganda feminista e sufragista] falou-me por várias vezes para entrar para a Ass. e numa reunião da direcção eu disse o embaraço em que me via porque, se a admitisse ficávamos sem força moral, mas, por outro lado, era um esplêndido elemento. Por acaso a Maria Feio estava no consultório e ouviu a discussão e as informações péssimas que todas deram dela. Pois que imagina que ela fez? Estando de relações cortadas com a Natividade foi procurá-la sem nada dizer a ninguém e por sua conta dizer-lhe não sei que trapalhadas. No final veio dar-me parte da linda missão, o que lhe valeu ouvir algumas frases azedas por se meter em assuntos para que não era competente. Respondeu-me que tinha procedido segundo a sua consciência e critério especial, o que sempre faria, de resto. Como se quem se associa, possa proceder por sua conta própria e não deva abstrair-se da sua individualidade. Prevejo sérios transtornos causados por aquela maluca. Um colega a quem ela maçou com a propaganda disse-me que aquela mulher era o bastante para dar cabo da Ass. Como tem influência nela veja se lhe recomenda prudência e juízo, pois de contrário ver-me-ei obrigada, se continuar com os mesmos disparates, a pedir-lhe que saia da Ass.

Sabe que afinal os 3 cravos brancos estão consagrados? Num jornal inglês, The Globe, vem um artigo a respeito do meu voto, falando da nova Ass. que tem como distintivo 3 cravos brancos, elogiando e pedindo às Ass. do mesmo género, que ainda não tiverem distintivo, para adoptar este tão gentil e aromático. Têm vindo m.tos telegramas e bilhetes de diferentes países. Temos reunido algumas vezes e eu tenho feito propaganda pelos deputados onde quer que os encontre. O Tempo acabou efectivamente.

A Maria [Maria Emília Ângelo Barreto, sua filha] passa razoavel.te e envia saudades especialmente ao Jéca [José Osório de Oliveira, filho mais novo de Ana de Castro Osório, que acompanhou os pais quando estes se estabeleceram em S. Paulo]. Eu cá vou vivendo, agora m.to aborrecida. Tenho trabalhado m.to, dias inteiros a discutir, a pensar, de maneira que tenho o cérebro em ebulição constante a que depois se seguem períodos de cansaço e fadiga como nunca tive. Se assim continuar só me restará a consolação de ter vivido m.to em pouco tempo.

A sua conta no Grémio já está liquidada: tem lá umas quotas na importância de 3500 réis e mais essas que envio, o que perfaz a soma, creio, de 6050. Ficaram m.to magoadas por não ter ido despedir-se delas. Aquilo continua na mesma: quem dá ordens é a interessante e estúpida oradora; cada vez embirro mais com ela e prevejo que qualquer dia perco a paciência e dou-lhe uma sova mestra por causa do voto. Já ontem lhe fui para cima. Irrita-me e depois...

Quanto mais penso mais me aborrece esta estúpida vida: ora veja lá também essa... nem sei quê, dessa Olga [Olga de Morais Sarmento da Silveira. Por essa época as feministas portuguesas insurgiram-se contra as declarações proferidas por essa escritora, no Brasil, de elogio à ex-Rainha D. Amélia. Depois da morte de Paulino de Oliveira, Olga de Morais Sarmento procurará reatar o seu antigo relacionamento com Ana de Castro Osório, com quem tinha convivido intensamente em Setúbal e na redacção da revista Sociedade Futura - cf. Colecção Castro Osório, Esp. N12/190], a linda figura q. anda fazendo por lá, depois dos jornais a porem nas nuvens. Q.do for entregar a representação ao Teófilo [Teófilo Braga] hei-de contar-lhe.

Já recebeu, é claro, aí postais meus.

M.tos cumprimentos ao mano Paulino [Paulino de Oliveira, marido de Castro Osório e Cônsul de Portugal em S. Paulo]. Beijos ao Jéca e um abraço para si, m.to saudoso,

da sua m.to A.

Carolina

A Teresa Franco escreveu-me. Escreva e fale-me de si e dos seus."

[BN, ACPC, Colecção Castro Osório, Esp. N12/419]
in As Origens do Sufragismo Português, Lisboa, Bizâncio, 1998

[1998]

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