[Cipriano Dourado]

[Cipriano Dourado]
[Plantadora de Arroz, 1954] [Cipriano Dourado (1921-1981)]

sexta-feira, 4 de março de 2011

[0338.] Carolina Beatriz Ângelo

- Entrevistas -
II
O jornal A Capital de 25 de Março de 1911 publica uma entrevista com a médica Carolina Beatriz Ângelo.

 
[25.03.1911]

"No Limiar Da Urna - As mulheres querem entrar! - ‘Se a lei não nos abre a porta, também não nos põe na rua’ - Assim o entende uma denodada sufragista portuguesa

[...]
A notícia é nova em folha e podia, portanto, ser dada com mais preâmbulos. Como, porém, não queremos torturar a curiosidade do leitor, aqui lha servimos sem rodeios: a mulher portuguesa não se conformou com os severos artigos e parágrafos da lei eleitoral, que lhe recusam a liberdade de voto. Reage, e... vai tentar a escalada da urna! Será feliz nessa arriscada empresa, que muitos de nós, os fortes, não teríamos coragem de abordar? Terá, para isso, de empregar heróicos esforços, cujos ecos façam gemer os prelos da Europa inteira?

À primeira pergunta responderá o futuro. À segunda respondemo-lhes nós, pela boca duma das nossas mais sinceras democratas - a distinta médica sr.ª D. Carolina Beatriz Ângelo.

*

A inteligente sufragista não quis acreditar nos seus ouvidos quando lhe dissemos - que sabíamos tudo. Evidentemente, ela tinha o seu segredo - porque, por enquanto, é um segredo! - fechado a sete chaves, e julgava-o até inatingível pela diabólica indiscrição do repórter. Caiu, por isso, das nuvens. E, conquanto não tivesse a crueldade de nos obrigar a dizer o nome do nosso informador, íamos jurar que ainda mesmo agora o não sabe - nem talvez o venha a saber. Entretanto, gentilmente confessou que a nossa informação era exacta, passando a expor-nos em poucas palavras o seu plano - que, afinal, é bem simples.

- A nossa intenção - começou ela - não é pedir agora ao governo que introduza modificações na lei. De forma alguma. Nós propomo-nos tomar parte no sufrágio eleitoral, mas sem que para isso seja necessário alterar uma vírgula do decreto.

E, perante a nossa sincera estupefacção, a ilustre feminista explica:

- A lei eleitoral, conquanto não nos abra a porta, também nos não dá com ela na cara. Esse facto é que talvez o senhor não tenha notado e por isso se admira tanto. Pois leia a lei e verá. Encontram-se ali artigos e parágrafos para determinar quem pode ser eleitor e artigos e parágrafos para mostrar quem pode ser elegível; explica-se ali que tal e tal não pode votar porque é menor ou não tem folha corrida, e que tal e tal não pode ser eleito porque desempenha determinados cargos. O que, porém, ali se não diz é que tal e tal não pode ser eleito ou eleitor... pelo facto de ser mulher. Ora, se assim é, porque motivo hão-de as mulheres ser excluídas da urna?

Achámos curioso o argumento, mas, como é natural, mais uma vez nos mostrámos incrédulo. Porém, a nossa ilustre entrevistada prossegue:

- Bem sei o que me vai dizer. Que se a lei não menciona os sexos é porque se subentendia que só dos homens se tratava. Efectivamente, assim parece, e decerto foi essa mesma a impressão do legislador. Mas a verdade é que, juridicamente, não é assim. Devo esclarecê-lo que, antes de tomar a resolução de reclamar, consultei o meu advogado . E conquanto tenha compreendido - faça-me a justiça de o acreditar - que, na intenção da lei, estão as mulheres irremediavelmente excluídas, nem por isso deixaremos de apresentar o nosso protesto, quando mais não seja para obrigar o ministro... a publicar um esclarecimento à mesma lei. Se o não fizer nem formos atendidas, resta-nos a consolação de dizer que a lei deixou de ser observada.

- Evidentemente, é isso que vem a acontecer. Publica-se o esclarecimento... e nada feito.

- Decerto. Nós também não contamos com outra coisa. Mas, ao menos, cumpre-se a lei; e com isso nos contentamos, por agora...

- Por agora...

- Naturalmente. O facto de termos sofrido agora uma decepção - porque foi uma decepção - não basta para nos prostrar desalentadas. Continuaremos, com mais tenacidade que nunca, a pugnar pelo que reputamos um sacratíssimo direito - o voto das mulheres. Bem sei que nos tentam tapar a boca com o eterno argumento: a mulher não está suficientemente educada para intervir na política do país. De acordo. Nós também não reclamamos desde já o voto para todas. Reclamamo-lo para aquelas cuja ilustração e inteligência as colocam em circunstâncias iguais ou superiores às dos homens. E não se pode dizer que isso afectaria os princípios da igualdade, visto que também entre os homens se faz idêntica selecção.

O voto das mulheres - continua a nossa amável interlocutora - é absolutamente indispensável numa sociedade bem constituída e especialmente num país onde se implantaram os princípios da democracia. A experiência é cheia de fac-tos que o comprovam. Toda a gente sabe que a entrada das mulheres em certos parlamentos, como por exemplo os da Noruega, contribuiu enormemente para a diminuição do alcoolismo. É que há questões e problemas no organismo de um povo que só as mulheres podem compreender eficazmente. E se as mulheres já têm o direito de intervir na arte, no funcionalismo, na ciência, em todos os ramos, enfim, da actividade humana, porque razão hão-de deixar de intervir na política, que é o principal factor de toda a engrenagem social?

A sr.ª D. Beatriz Ângelo falava agora com outra animação, e decerto prosseguiria na sua bela defesa das regalias feministas. Eram, porém, horas de seguir para o seu consultório médico, onde certamente a aguardavam já numerosos clientes. Urgia, portanto, por termo às suas interessantes considerações. Mas, como ainda lhe dirigíssemos mais uma pergunta sobre a reclamação a fazer ao governo, a ilustre senhora gentilmente nos esclarece:

- Trata-se dum requerimento em forma, condimentado com os necessários argumentos justificativos. É elaborado por mim e deve ser entregue dentro de breves dias.

E com estas palavras pôs termo à agradável palestra, da qual fornecemos ao leitor os pontos mais interessantes.

R. J."
[A Capital, p. 1, cols. 6-7 e p. 2, col. 1]

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