* MEMÓRIAS DO EXÍLIO || ANA ARANHA E CARLOS ADEMAR *
[Edições Parsifal || 2018 || Imagem de capa de Fernando Mariano Cardeira]
Contam-se por muitos milhares os exilados políticos portugueses entre 1926 e 1974. Os militares, republicanos, anarcossindicalistas e comunistas que se envolveram nas revoltas e revoluções contra a Ditadura Militar tiveram como destino a prisão, a deportação, o exílio e, por vezes, a morte, sendo que muitos desses nomes perderam-se no tempo e permanecem no anonimato, sem o devido reconhecimento dos vindouros. Suportaram e superaram dificuldades hoje inimagináveis, longe de familiares e amigos, num quotidiano sem comunicações e onde a luta pela sobrevivência e a penúria económica era uma constante, num mundo de perigos entre as Grandes Guerras.
Se esses exilados, que foram, sublinhe-se, aos milhares, continuam olvidados, Memórias do Exílio, conversas/entrevistas radiofónicas com Ana Aranha datadas de 2017 e editadas com Carlos Ademar [Edições Parsifal, 2018], dão a conhecer vivências e percursos de doze exilados políticos da década de 1960.
O país, mais de três décadas depois dos primeiros exilados, continuava sob Ditadura, entretanto rebaptizada de Estado Novo, e se o combate, a dor da partida, a solidão, a saudade, as rupturas familiares/afectivas e o desenraizamento seriam idênticos, acrescentava-se, a partir de 1961, a Guerra Colonial. À prisão e à tortura de quem combatia e denunciava o regime, sobrepunha-se a incorporação militar tendo como destino a Guerra Colonial nos territórios onde, na transição da década de 20 para a de 30, milhares de presos políticos tinham sido deportados.
Se quase todos os nomes expostos por Ana Aranha e Carlos Ademar são facilmente reconhecidos na sociedade pós-25 de Abril, já os sobressaltos, temores e lutas por que passaram estes sete homens e cinco mulheres constituem um importante contributo para avivar a memória de um país desmemoriado e pouco dado a brandos costumes.
Mais do que Memórias do Exílio, são memórias de exílios: Ana Benavente, exilada em Genebra entre 1965 e 1974, partiu aos 19 anos; Cláudio Torres saiu em 1961, aos 21 anos, e passou por Rabat, Argel e Praga, antes de se fixar em Bucareste; Fernando António Almeida passou, nos seus oito anos de exílio, por França, Itália, Bélgica e Argélia; Fernando Mariano Cardeiro, desertor da Guerra Colonial, exilou-se na Suécia a partir de Setembro de 1970; Hélder Costa partiu, em 1967, a salto para França, tendo, no entanto, vindo por três vezes clandestino a Portugal; Helena Cabeçadas partiu aos dezassete anos, proibida de concluir a cadeira que lhe faltava do 7.º ano do Liceu, e fixou-se, em 1965, na Bélgica [v. Helena Cabeçadas, Bruxelas, Cidade de Exílios, Chiado Editora, 2014], tendo, nesses dez anos, entrado em Portugal nalgumas ocasiões; Luís Cília, cujo disco Portugal-Angola é um marco na luta anticolonialista, rumou a Paris em 1964; Luísa Tito de Morais, tal como quatros irmão, conheceu o exílio forçado a partir de 1961, passando por Paris, Praga e Argel; Manuel Pedroso Marques, participou no Golpe de Beja e, depois de quase três anos asilado na Embaixada do Brasil, seguiu clandestinamente para Paris, donde viajou para aquele país [v. Manuel Pedroso Maques, Os Exilados – Não Esquecem Nada Mas Falam Pouco, Âncora Editora, 2015]; Manuel Villaverde Cabral permaneceu onze anos em França (“tinha vinte e três anos e voltei ia fazer trinta e quatro”); Margarida Tengarrinha esteve exilada seis anos, após o assassinato de José Dias Coelho, seu companheiro, radicando-se em Moscovo e, depois, em Bucareste, regressando à luta política em 1968; e por fim, Teresa Rita Lopes, com três filhos pequenos, rumou para França em finais de 1963.
[Edições Parsifal || 2018]
Cada um dos testemunhos incorpora Histórias pessoais e colectivas, ramificando-se por muitos outros nomes e acontecimentos, devidamente explicitados em esclarecedoras notas de rodapé. Em todos, sobressai a mesma vontade de lutar contra o fascismo, a militância anticolonialista, a solidariedade entre os pares, o alargamento de horizontes, a saudade das pequenas coisas e, também, quão importante foi o apoio familiar, mesmo quando à distância de milhares de quilómetros.
Como os testemunhos de Memórias do Exílio bem evidenciam, o Exílio não constitui apenas uma ruptura para quem partiu e afecta, de outra forma, quem vê partir sem prazo de regresso.
Falar de exílios é, numa nota pessoal, evocar um tio-avô materno que, depois de primeiro exílio em Paris e em Madrid, na década de trinta, voltou a exilar-se em 1949, após mais uma prisão na sequência do movimento de 10 de Abril de 1947, encabeçado por Mendes Cabeçadas. Quando regressava à sua terra, ao fim de dezasseis anos no Brasil, onde se cruzou com Manuel Pedroso Marques [autor de um dos testemunhos], faleceu de comoção à entrada da barra do Tejo, com 78 anos de idade.
Falar de exílios é, também, recordar uma mãe que todos os domingos à noite, entre Outubro de 1971 e Abril de 1974, preparava meticulosamente um pacote, atado por dois cordéis, de recortes seleccionados do Diário de Lisboa para ser enviado, acompanhado da carta semanal da família, sempre numerada, para milhares de quilómetros de distância.
Falar de exílios é, ainda, não esquecer um pai e uma mãe que puderam e souberam cuidar da família através de reencontros regulares aqui e acolá, pais esses dispostos, caso continuasse a Guerra Colonial, a abdicar da sua vida profissional e já preparados para acompanhar os outros filhos, todos rapazes, num exílio mais que previsível.
“Porque já passaram muitos anos, o tempo corre contra esta memória” [Ana Aranha, p. 53] e, por isso mesmo, urge preservá-la. Pelos exilados, pelos que ficaram e pelos contemporâneos. Por tudo, é de enaltecer este excelente documento histórico de Memórias do Exílio da autoria de Ana Aranha e Carlos Ademar e co-autoria dos doze exilados.
[João Esteves]
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