[Cipriano Dourado]

[Cipriano Dourado]
[Plantadora de Arroz, 1954] [Cipriano Dourado (1921-1981)]

domingo, 1 de abril de 2018

[1780.] MARGARIDA TENGARRINHA [III]

* MARGARIDA TENGARRINHA || MEMÓRIAS DE UMA FALSIFICADORA: A LUTA NA CLANDESTINIDADE PELA LIBERDADE EM PORTUGAL *

[Edições Colibri || 2018]

A luta contra o Fascismo, em Portugal, durou quarenta e oito longos anos. Houve quem se acomodasse e houve quem, em condições inimagináveis pela dureza de um quotidiano incerto, tenha resistido dia após dia, apoiado em redes solidárias – legais, semilegais, clandestinas -, apesar da forte repressão de uma polícia política eficaz, aterrorizadora e com tentáculos nos mais inesperados e recônditos lugares.

Margarida Tengarrinha, militante do Partido Comunista desde 1952, totalizou treze anos de vida clandestina (1955-1962, 1968-1974), tendo “mergulhado” em 1955, com José Dias Coelho, intercalados por seis de exílio (1962-1968), sem nunca ter sido presa! Tinha 27 anos e o companheiro 32. Para além de ser uma militante “disciplinada, dedicada e eficaz” e de contar com a “resistência indómita daqueles que, sob tortura, nunca denunciaram”, como escreve Manuel Loff, rodeou-se, também, de inúmeros homens e mulheres que, “conscientes do perigo que corriam e vencendo o medo, com coragem e generosidade, abriram as suas casas, deram guarida, serviram de refúgio aos perseguidos, transportaram nos seus carros e apoiaram de variadíssimas formas os militantes clandestinos e o seu partido, o Partido Comunista Português” [p. 171].

É destes Homens e Mulheres, “pessoas desconhecidas do grande público”, “gente modesta”, “sem esperarem reconhecimento”, “louros nem glórias” [p. 17], que Margarida Tengarrinha fala em Memórias de uma falsificadora: a luta clandestina pela liberdade em Portugal [Edições Colibri, 2018]. E se “não há futuro sem memória”, como nota o historiador Manuel Loff no Prefácio à obra, as páginas de Margarida Tengarrinha constituem um importantíssimo repositório de factos e nomes, daqueles que (ainda) não estão gravados na História, mas “cuja acção foi fundamental no derrubamento do fascismo” [p. 14].

Margarida Tengarrinha expõe a militância antifascista, as consequências no curso inacabado, o impedimento de continuar a leccionar desenho, a interrupção de uma carreira nas artes, a passagem da vida cultural e associativa intensa à adaptação às exigentes condições da clandestinidade, a vida quotidiana em cada casa, a redacção do jornal Avante!, sempre em território nacional, a ligação às tipografias, as sociabilidades políticas e familiares, nomeadamente com as cunhadas Maria Adelaide, Maria Emília e Maria Sofia Dias Coelho e o cunhado Carlos Aboim Inglez), a luta pelos direitos das mulheres e das crianças, alicerçada no convívio com Maria Lamas, ao mesmo tempo que dá a conhecer o temerário desempenho, em conjunto com o companheiro José Dias Coelho, na falsificação de documentos de identificação essenciais para a sobrevivência de qualquer clandestino, e a transformação do órgão “Três Páginas” em “A Voz das Camaradas das Casas do Partido”. Posteriormente, o casal ficará encarregue da preservação, em fotogramas, do arquivo e documentação do Partido Comunista e, a partir deste, da escrita do livro (Crónicas d’) A Resistência em Portugal (1961). 




A Autora descreve a passagem de testemunho da “oficina de falsificação”, ao fim de seis anos, para o engenheiro Júlio da Conceição Silva Martins, barbaramente torturado e um dos obreiros da Reforma Agrária, e da mulher Natália David e, depois daquela ter sido descoberta pela PIDE, o recomeçar com Américo Leal, sendo que Margarida Tengarrinha, a quem tinham acabado de assassinar o marido, era a única com conhecimentos técnicos para montar uma outra, o que fez antes de partir para um exílio de seis anos em Moscovo (1962-1964) e Bucareste (1964-1968). 

Para além de episódios vividos com dirigentes históricos comunistas, como Álvaro Cunhal, Aurélio Santos, Francisco Miguel (inesquecível a parte em que este ensina a filha Guida a “fugir” do seu parque de grades de madeira), Joaquim Pires Jorge, José Vitoriano, Júlio Martins, Manuel Rodrigues da Silva, Maria da Piedade Morgadinho ou Sérgio Vilarigues, talvez o contributo mais relevante para a historiografia da resistência seja precisamente a visibilidade que dá e a “admiração, amizade e gratidão” [p. 17] que presta a muitos dos quase anónimos que estiveram, em cada lugar e no momento certo, (sempre) ao seu lado e do colectivo partidário no combate antifascista.

Para que não sejam esquecidos, perpassam pelas Memórias de uma falsificadora, entre muitos outros, o casal de operários agrícolas do Couço Maria Gracinda e Joaquim Almas Nunes, este a trabalhar na construção civil do Porto, em cuja casa, na aldeia de Fontelos, Margarida Tengarrinha viveu e trabalhou na redacção e arquivo do Avante! entre 1968 e 1974; os tipógrafos do Porto, Maria Fernanda Silva e Carlos Pires (recentemente falecido), e os de Lisboa, Maria Júlia e Raúl Costa; os médicos, médicas e parteiras/enfermeiras que ajudaram as parturientes clandestinas (Cesina Bermudes, Ferreira Vicente, Lúcia Terlô, Maria da Purificação Araújo, Olívia Vasconcelos, Pedro Monjardino); Maria Helena Magro, companheira de Joaquim Pires Jorge, faleceu no hospital de uma gravidez de alto risco (Dezembro de 1956) e com quem mantivera troca de correspondência, apesar de não se terem conhecido pessoalmente; o casal Palmira Castro e Fernando Sampaio e Castro, cuja casa, em Leça do Balio, era um ponto de apoio seguro; o casal Leonor Oliveira e António Alfredo Paiva Nunes que a receberam quando teve de abandonar repentina a casa, na sequência do assassinato do companheiro; e os sempre pouco falados/esquecidos/ignorados/silenciados pais, mães e avós dos clandestinos e presos políticos.

Como refere Margarida Tengarrinha, aqueles “nunca estiveram presos, mas ninguém como eles conheceu todos os caminhos que levavam aos cárceres políticos, desde o Aljube e Caxias à prisão da PIDE na Rua do Heroísmo no Porto, da Fortaleza de Peniche até ao longínquo Tarrafal” [p. 161]. Não estiveram presos e não foram torturados, mas passaram pelos mesmos constrangimentos ditatoriais ao apoiarem os familiares detidos e torturados. 


A Autora identifica o casal Herculana de Carvalho, “uma verdadeira mãe dos presos do Tarrafal” [p. 162], e Luís Alves de Carvalho, autor das fotografias únicas dos presos do Tarrafal e das campos dos mortos aquando da sua deslocação ao Campo de Concentração para verem o filho, Guilherme da Costa Carvalho; de Juliana Augusta Dias Coelho e de Alfredo Coelho, pais de José Dias Coelho [que o meu pai conheceu em Castelo Branco nos tempos de estudante do Liceu, por ser colega e amigo de Alberto e de Fernando, sendo José Dias Coelho ainda “um garoto de calções”]; Flora Magro, “talvez a mulher portuguesa que durante mais tempo visitou incansavelmente as cadeias políticas” [p. 166], pois teve presos, em simultâneo ou em tempos diferentes, o filho, José Magro, a nora, Aida Magro e genro, Pires Jorge, tendo criado as netas Manuela e Clara; Maria Rodrigues Pato, que viu serem detidos e torturados três filhos (um deles, Carlos Pato, também assassinado pela PIDE), uma nora, um neto e um sobrinho; Manuel José da Costa, pai de Carlos Costa, e Avelino Costa e Maria da Conceição Gomes da Costa, seus tios. Sem esquecer a generosidade e solidariedade para com os presos e suas famílias das pintoras Maria Clementina Carneiro de Moura e Maria Keil e da médica Maria Luísa Almeida. 

Uma vida clandestina onde Margarida Tengarrinha teve de “aprender a saborear a felicidade possível” [p. 43], dilacerada pela morte da mãe, Teresa Marques do Carmo Mendes Tengarrinha; a separação da filha mais velha, “terrível para todas nós”, “pior do que a prisão, pior do que as torturas” [p. 53]; e, por fim, o brutal assassinato de José Dias Coelho pela PIDE em Dezembro de 1961, com apenas 38 anos, sabendo do desenlace quando já tinha sido enterrado.

Memórias de uma Resistente comunista e da Resistência Antifascista ilustradas por vasta documentação iconográfica, sobretudo gravuras da Autora, algumas ainda erroneamente atribuídas a José Dias Coelho, e que constitui, também, uma belíssima homenagem ao seu companheiro e às duas filhas, Teresa e Guida, procurando, assim, “fugir à corrupção da morte e ao esquecimento de si próprio e daqueles que conheceu, amou e admirou” [p. 176].



[João Esteves]

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