* FICARAM PELO CAMINHO: 1926 - 1974 *
Quando se perfazem 48 anos sobre o derrube do Fascismo e a meses de se completarem 48 anos da conquista da Liberdade, a iniciativa do Museu do Aljube de editar o livro Ficaram pelo Caminho 1926 – 1974 não poderia ser mais oportuna quanto à preservação da memória daqueles e daquelas que integraram a resistência antifascista e popular.
Este livro, com os nomes e os rostos possíveis dos 175 mortos e/ou assassinados entre 1926 e 1974, a que há que acrescentar os cinco africanos, número meramente simbólico, que perderam a vida na sequência da reabertura do Campo de Concentração do Tarrafal rebatizado Campo de Trabalho de Chão Bom, constitui, antes do mais, uma homenagem àqueles que, tendo ousado lutar, numa caminhada sem fim anunciado, ficaram pelo caminho em condições trágicas.
Folhear este “Álbum”, triste e, simultaneamente, heroico que há muito merecia ter sido concretizado, é recuperar a memória de cada nome, repô-lo no seu lugar da História, agradecer-lhe pelo que fez, reconhecer a sua coragem e (re)afirmar que a sua vida NÃO FOI EM VÃO!
Cada nome inscrito representa uma história de vida, a mais das vezes sofrida, extensível aos familiares que suportaram consequências humanas, políticas, económicas e sociais inimagináveis. Remete-nos para fragmentos temporais, lugares, sociabilidades e solidariedades, relembrando, em simultâneo, os espaços prisionais e concentracionários por que cada um passou, bem como os seus torcionários, omnipresentes. Evoca, ainda, mobilizações populares, duramente reprimidas.
Todos juntos, representam uma pequena, mas significativa, parte do que foi a Resistência Antifascista e quanto ela custou a muitos dos que não se aquietaram e, por isso, foram vítimas das tenebrosas polícias políticas, torturados e mortos.
A Memória da Resistência, a individual e a coletiva, tem de ser, permanentemente, alimentada, investigada, divulgada e, sempre que necessário, retificada, de forma a romper silenciamentos que há muito perduram, sobretudo quando envolvem pessoas, muitas delas modestos trabalhadores e trabalhadoras, que não viveram para fazer ouvir a sua voz. Certo é que passaram 48 anos sobre o derrube da mais longa ditadura da Europa e há, ainda, 64 nomes cujo rosto não é passível de ser fixado para a posteridade. Ou seja, 37% do total dos que “Ficaram pelo Caminho”.
Conjugando investigação, síntese e divulgação, esta edição do Museu do Aljube, coordenada por Rita Rato e Francisco Bairrão Ruivo, (re)lembra-nos cada um dos 168 homens, das 7 mulheres e de 5 africanos que foram vítimas mortais da Ditadura.
Valerá a pena atentar nalguns números e eventuais conclusões, envolvendo o universo dos primeiros 175 nomes: 133 (76%), foram vítimas em contexto prisional; 28 (16%), foram vítimas em contexto de repressão à mobilização popular; e 10 (6%), foram assassinados fora de estabelecimentos prisionais ou concentracionários.
Dos 48 anos de Fascismo, registaram-se mortes em 40, sendo que até 1951 houve-os todos os anos, atingindo maior número em 1938, com 15. O período entre 1937 e 1945 conta com 78 mortos, ou seja 45% do total, correspondendo ao tempo da Guerra Civil de Espanha e da 2.ª Guerra, quando o fascismo e o nazismo alastravam impunemente.
Quarenta e um (31%), morreram em contexto hospitalar de Lisboa, do Porto e de Angra do Heroísmo, ou seja, foram deixados em hospitais e outras unidades de saúde para morrerem, incluindo estabelecimentos de saúde mental, depois de submetidos a violentas torturas e/ou para escamotear a possibilidade de terem falecido na prisão.
Trinta e três, pagaram com a vida a deportação para o Campo de Concentração do Tarrafal, também conhecido pelo “Campo da Morte Lenta”, a “Aldeia da Morte”, o “Pântano da Morte” ou o “Inferno Amarelo”. Muitos deles jovens que tinham ousado participar no movimento revolucionário do 18 de Janeiro de 1934 e/ou na Revolta dos Marinheiros de 8 de Setembro de 1936, protagonizada pela Organização Revolucionária da Armada. Ali faleceram o dirigente anarquista Mário Castelhano e Bento Gonçalves, Secretário-Geral do Partido Comunista Português.
Mas a morte passou por outros lugares: Aljube de Lisboa, Cabo Verde, Caxias, esquadras diversas, Peniche, Penitenciárias de Lisboa e de Coimbra, sede da PVDE/PIDE em Lisboa e no Porto e Timor, sem esquecer cadeias locais como as de Angra, Bragança, Funchal e Ovar.
Três raparigas, com 17 e/ou 18 anos perderam a vida na sequência da ação repressiva contra manifestações populares: Belmira da Conceição Gonçalves, assassinada aquando das “Revoltas das Águas” na Lombada, ilha da Madeira, em 1962; e Maria de Lurdes Oliveira e Rosa Vilar da Silva, mortas na Lourosa, aquando do afastamento do pároco local, em 1964. O mais velho, o comerciante Alberto Araújo, tinha 71 anos aquando do desenlace em 1950.
Mas talvez um dos dados mais relevantes desta publicação seja a evidência seletiva e classista de quem enfrentou o Fascismo e se tornou sua vítima: 62% são operários, camponeses, mineiros, pescadores, trabalhadores manuais ou indiferenciados; 20% integravam a classe média e o setor terciário; 9% eram militares; e 3% estudantes.
Da elite republicana que desempenhou funções políticas nos dezasseis anos da 1.ª República, “apenas” consta o contra-almirante Luís da Câmara Leme, falecido nos Açores em 1928, e alguns militares, dos quais se deve dar o devido relevo a Adalberto Gastão de Sousa Dias, um dos poucos que tentou travar, no Porto, o movimento saído de Braga em 28 de Maio de 1926.
A morte ceifou anarquistas, anarcossindicalistas, libertários e, sobretudo, militantes comunistas ou com ligações ao Partido Comunista, numa percentagem que rondará, por defeito, 40% do total dos que “Ficaram pelo Caminho” neste contexto específico.
Há, claro, muitos outros nomes a reter pelo contexto que representam, como o jovem Francisco Brito, que recusou a mobilização para África e, acusado de deserção, terá sido assassinado pela GNR em 1964, em Loulé, desconhecendo-se as circunstâncias exatas; ou o de Francisca Maria Colaço, trabalhadora agrícola que se tornara funcionária do Partido Comunista na clandestinidade e morta em 1967 por um agente da PIDE numa casa perto de Benfica. Tinha 29 anos e vivia com duas filhas menores, encontrando-se o marido preso por razões políticas.
Nomes e mortos, ainda hoje, incómodos e silenciados, talvez porque muitos se calaram, se acomodaram ou cultivaram a ambiguidade na “Oposição”.
Os cinco africanos incluídos, três angolanos e dois guineenses vítimas da violência colonial, constituem apenas uma ínfima parcela entre as centenas/milhares de mortos em prisões e campos de concentração – Fortaleza São Pedro da Barra e São Nicolau (Angola); Machava (Moçambique); Tarrafal, rebatizado Campo de Trabalho de Chão Bom (Cabo Verde). Ou em brutais e dapiedados massacres que não podem, mais, ser ignorados: Batepá (S. Tomé e Príncipe); Pidjiguiti (Guiné-Bissau); Baixa do Cassange (Angola); Wiriamu e Inhaminga (Moçambique)…
Este livro leva-nos, ainda, a centrar a atenção em quem Resistiu, seja de forma mais consciente ou, apenas, em resultado momentâneo das circunstâncias. Cada um dos nomes merece ser reconhecidos pelo que fez, como lutou e em que condições veio a morrer. As ações de quem lutou dispensam ser desconsideradas ou desvalorizadas, introduzindo-se, tantas vezes por preconceitos ideológicos, o “mas”, como que procurando relativizar a coragem que outros, tantos outros, não tiveram e, assim, se desacredita o essencial: que alguém resistiu e morreu por isso!
Esta é uma obra dura, muito dura pelo que contém, relata e deixa entrever. Fala-nos de vidas concretas ceifadas antes do tempo e que experienciaram incontáveis mudanças de prisão, numa angústia permanente sobre o que lhe esperava e vendo cortados quaisquer laços familiares e/ou de solidariedade que se iam criando em cada momento e em cada local.
Mas é, sobretudo, um importantíssimo libelo contra o esquecimento, a desmemória, a desculpabilização e o silenciamento. E se muitos não tiveram quem lhes perdurasse a memória, mais uma razão para não continuarem condenados ao esquecimento.
Cada um dos nomes e cada rosto, mesmo quando só o podemos pressentir, representa alguém que não se aquietou, que lutou e que foi vítima de atrozes torturas ou, então, enfileirou em ações populares, espontâneas ou não, violentamente reprimidas. Reviver cada deles é recuperar a sua memória, homenageá-lo e sentir quão importante foi a sua luta. Reconhecer a sua coragem e reafirmar que “Não foi em vão!”.
Por ser uma investigação sempre em construção, outros nomes, outras informações, outras fotografias poderão, assim se deseja e seja possível, enriquecer futuras edições.
Um livro que merece toda a divulgação e a sua inclusão no Plano Nacional de Leitura. Para que nunca esqueçamos!
João Esteves
25 de Janeiro de 2022, Museu do Aljube Resistência e Liberdade
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