* FERNANDO PITEIRA SANTOS *
[23/01/1918 - 28/09/1992]
Devo a mim próprio a memória da minha vida. Fernando Piteira Santos
Prisão. Clandestinidade. Exílio. Morte.
Organização e coordenação || Maria Antónia Fiadeira
Prefácio || Maria Antónia Palla
Campo da Comunicação || 2013
[Coordenação Maria Antónia Fiadeiro || Campo da Comunicação || 2013]
Cartas manuscritas inéditas do acervo familiar de Fernando Piteira Santos e que abrangem períodos de prisão, da clandestinidade e do exílio. Trocadas dentro do agregado familiar, reflectem pequenos assuntos de um quotidiano infernizado por um país sob Ditadura: «cartas francas, amigas, afectuosas, de um homem a quem a luta e o combate exigiam temperamento de aço e lucidez de lince»; cartas onde Fernando Piteira Santos se revela «íntimo de si próprio» [Maria Antónia Fiadeiro, p. 27].
Ao reunir parte significativa da correspondência trocada durante 30 anos, de 1945 a 1974, entre Fernando Piteira Santos e a mãe, Leonilde Bibiana Maria Piteira Santos [1873 - 26/02/1963], a mulher, Stella Bicker Correia Ribeiro [1917 - 2009], e a enteada, Maria Antónia Fiadeiro, esta «invasão epistolar» transporta-nos para um mundo sombrio de décadas e onde, malgrado as circunstâncias, sobressaem valores, utopias, esperanças e, sobretudo, «muita coragem de todos para as coisas insignificantes do dia a dia» [p. 28].
Cartas que, como refere Maria Antónia Palla no Prefácio "Piteira Santos. Para lá da Razão", «são um documento surpreendente porque nos revelam um aspecto pouco conhecido da personalidade de um homem olhado essencialmente como um intelectual e político», ao deixar transparecer, sobretudo nas missivas enviadas de doze anos de exílio, os sentimentos de «ternura, amizade, amor, saudade, frustração, solidão», sempre conjugados com «o sentido de responsabilidade, em relação aos deveres cívicos e políticos, ao trabalho e à família» [p. 30].
A correspondência para Stella Bicker iniciou-se em 1945, quando Piteira Santos estava preso em Caxias, tendo depois passado para Peniche, onde continuava em Dezembro de 1947. A troca epistolar prisional foi retomada com uma carta enviada em 19 de Agosto de 1961, quando encarcerado no Aljube, por ter sido um dos promotores do Programa para a Democratização da República.
Após o fracasso do assalto ao Quartel de Beja, na noite de 31 de Dezembro de 1961 para 1 de Janeiro de 1962, de que foi um dos mentores, Fernando Piteira Santos foi forçado a entrar na clandestinidade e a exilar-se, iniciando, então, nova troca de correspondência, sobretudo com a enteada que, no Verão de 1967, se fixou no Brasil com os dois filhos.
Em Marrocos, para onde fugiu de barco ao fim de meses na clandestinidade, iniciou o ciclo do exílio, única alternativa para continuar, em segurança, o combate politico há muito iniciado, mas sempre a pensar no regresso ao país, o que fará uma vez, fugazmente, em 1968.
Antes de se fixar em Argel, passou, ainda, por Paris e Roma, reencontrando outros exilados. Ansiando por notícias, não pretende que lhe enviem «palavras líricas ditadas pela generosa intenção de me trazerem despreocupação e paz»: «preciso de saber o que se passa em casa,que dificuldades têm, como estão de saúde, como correm os negócios?» [p. 36].
Stella juntar-se-á ao marido em Argel, onde também viveu a filha, Alfredo e os dois netos até ao Verão de 1967, quando estes quatro rumaram ao Brasil, deixando um vazio difícil de preencher e que as cartas trocadas bem evidenciam. A dureza do próprio exílio, a falta da enteada e dos netos, bem como as condições pessoais e materiais que enfrentavam, o prolongamento da ausência, que sempre julgou temporária, do país, o convívio em ambientes restritos e algumas das ilusões políticas desfeitas, são temas expressos em diferentes missivas. Sempre com enorme realismo e lucidez.
Como refere Maria Antónia Palla, «Fernando prometera a Stella, no início do exílio, que este seria apenas escala. "É para Lisboa que eu caminho mesmo quando me desvio no espaço"» [p. 39]. Só conseguiu desembarcar em Lisboa em 2 de Maio de 1974, após doze anos, muito sofridos, de exílio, para viver num Portugal livre depois de 48 anos de uma persistente Ditadura. A mais longa da Europa.
Dividido em 4 capítulos, o primeiro contém cartas enviadas e recebidas na prisão, balizadas entre 4 de Dezembro de 1945 e 12 de Outubro de 1961, aquando das suas detenções no Forte de Caxias (1945), na Fortaleza de Peniche (1947) e na Cadeia do Aljube (1961), tendo como interlocutoras a mãe, a futura esposa, com quem casaria em 7 de Fevereiro de 1948, e a enteada.
O Capítulo 2 envolve o período da clandestinidade, imediatamente a seguir ao Golpe dr Beja, e contém dois manuscritos: o primeiro, datado de 22 de Março de 1962, onde «analisa com amarga frieza a sua situação» [p. 35] e as seis opções que se lhe afiguravam possíveis, antecipando a cada uma delas as eventuais críticas de quem o conhecia, englobadas numa suposta "Voz pública": «A - Situação de ocultação severa, muito reduzidos e espaçados contactos, actividade limitada a tarefas "intelectuais"»; «B - Situação de ocultação cuidadosa, contactos efectivos e regulares, actividade política prudente»; «C - Asilo diplomático»; «D - Desaparecimento»; «E - Entregar-me à prisão (embora alegando um objectivo compreensível)»; «F - Prisão por iniciativa da PIDE ou acaso» ]pp. 91-92].
A outra carta corresponde a um texto longo, datado de 2 de Março do mesmo ano, dirigido a Franco Nogueira, Ministro dos Negócios Estrangeiros, onde denuncia a perseguição que lhe é movida e, sobretudo, o acto de violência e de represália da PIDE ao prender a sua mulher em 15 de Fevereiro, por o não conseguir capturar: «A prisão de Maria Stella é uma violência e é um acto de represália. Não se argumente que existia um qualquer pretexto legítimo para a sua prisão. O seu crime é ser minha Mulher. Não é legal, nem é decente, perseguir a família de um adversário político» [p. 94]; «Será amanhã legítimo pedir à Senhora Franco Nogueira explicações, informações ou responsabilidades relativas aos actos do Ministro Franco Nogueira?» [p. 95].
[Coordenação Maria Antónia Fiadeiro || Campo da Comunicação || 2013]
O Capítulo 3 reporta-se ao período do exílio e insere missivas enviadas e recebidas quando em Alger, centradas no agregado familiar, embora com maior incidência nas endossadas à enteada / filha Maria Antónia Fiadeiro.
A "Morte" encerra o livro através do texto de Maria Antónia Fiadeiro "Para Fernando Piteira Santos: Uma carta sem correio", publicado no Jornal de Letras em 20 de Outubro de 1992: «Foi pelo correio, creio, que todos sobrevivemos afectivamente. Líamos as palavras como se tocássemos a vida» [p. 153].
Esta correspondência constitui mais um importante contributo para se olhar para Fernando Piteira Santos de forma inteira, enquanto resistente antifascista, político, historiador, cidadão e Homem de família, ao mesmo tempo que retira do esquecimento os que com ele sempre conviveram e que, em momentos muito difíceis, constituíram o seu suporte afectivo.
[João Esteves]
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