[Cipriano Dourado]

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[Plantadora de Arroz, 1954] [Cipriano Dourado (1921-1981)]

terça-feira, 28 de julho de 2020

[2397.] DOMINGOS ABRANTES E O MUSEU DO ALJUBE || EXPRESSO - 25/07/2020

* DOMINGOS ABRANTES *

A CONFRARIA ANTICOMUNISTA E O MUSEU DO ALJUBE

Jornal Expresso || 25/07/2020

«A vida política nacional nos últimos dias foi agitada pelo crime político que foi a comunista Rita Rato ter sido escolhida num concurso em pé de igualdade de entre 60 concorrentes para directora do Museu do Aljube.

O PSD e o CDS pediram explicações pela estranha escolha. Elementos de extrema direita e outros que se autoclassificam de esquerda e democratas, desenvolveram uma intensa campanha persecutóriacontra Rita Rato de cariz anticomunista, antidemocrática, elitista, onde não faltaram manifestações de arrogância intelectual.

Mais importante do que terçar armas pelas capacidades de Rita Rato, isso o tempo se encarregará de esclarecer, é reflectirmos sobre a natureza dos argumentos subjacentes à condenação da escolha de Rita Rato, porque a triunfarem, causarão enormes estragos à nossa vida democrática.

O libelo acusatório contra a escolha de Rita Rato assenta basicamente em ela não ser licenciada em História (para alguns a razão é ela não saber nada de História); o ser política, forma eufemística para dizer que é por ser comunista; poder levar à hegemonização da memória da resistência pelos comunistas e ainda, entrando-se no campo da provocação, que a sua escolha resultou dos negócios da geringonça, de entendimentos secretos com o Presidente da Câmara. Um tacho, proclamou um fascistoide, que curiosamente ocupa vários tachos. Provocações de quem não se conforma com o terem visto ruir o (seu) «direito constitucional» não escrito, que era haver partidos com direito a existir (por enquanto), o que não podiam era ter uma palavra nas decisões governativas, nem ocupar cargos que consideram coutadas destinadas aos do «arco da governação».

Mas onde é que os sabedores de História (segundo os seus próprios juízos) aprenderam que só licenciados em História sabem de História? Bastar-lhes-ia olhar à volta para ver quanto é falso o que afirmam.

E em que fundamentam dever a licenciatura em História, abstraindo da natureza do Museu do Aljube, prevalecer como critério supremo?

O Museu do Aljube tem uma especificidade própria, que é ser dedicado à Resistência e à conquista da Liberdade como realidades inseparáveis, o que define a sua natureza e as suas funções: esclarecer a natureza do fascismo; dar a conhecer os seus crimes e formas de opressão; as causas da sua ascensão; os pilares que o sustentaram - os seus mentores e beneficiários; – o que representou o colonialismo e as guerras coloniais; dar a conhecer a gesta heróica da Resistência sem que a Liberdade não teria sido conquistada; prestar tributo à memória dos que deram a vida para que o povo português tivesse a Liberdade como modo de viver. Um dos seus objectivos fundamentais é contribuir para a formação democrática e dos valores da Liberdade das populações e sobretudo das novas gerações, cada vez mais sujeitas à política de apagamento da memória da resistência e de branqueamento do fascismo, no que se destacam alguns dos animadores da actual campanha.

O critério primeiro, irrenunciável para alguém poder dirigir o Museu do Aljube (o mesmo se põe em relação a Peniche) deve ser identificar-se com o seu projecto e defendê-lo. É situar-se nos valores do
antifascismo e do 25 de Abril que presidiram à sua instalação. A campanha contra a escolha de Rita Rato nada tem a ver com o suposto seu desconhecimento de História mas apenas com o facto de certas pessoas acharem inadmissível uma comunista dirigir um Museu dedicado à resistência e ocupar um cargo que, por direito, lhes devia estar destinado. Não é fruto do acaso que a campanha tenha sido desencadeada por uma personagem de direita, com o apoio activo de um órgão de comunicação social de direita e que, em torno desta campanha, se tenha estabelecido uma «santa aliança» animada pelo recheio do baú de velharias anticomunistas, de quem «à esquerda» nunca se reviu na natureza do Museu do Aljube e que na altura até arrasou os critérios que presidiram à sua instalação.

A aceitação do primado da licenciatura em História para ocupar o cargo de director do Museu da Resistência e da Liberdade levar-nos-ia a que pudesse estar à sua frente alguém que não se revisse na sua natureza e objectivos, mesmo branqueadores do fascismo e da PIDE, discípulos de Salazar e da sua obra, gente que absolve os crimes do fascismo, que se dedica a lançar lama sobre a Resistência e os seus mártires, na base de supostos conhecimentos de História.

Como é sabido, existem doutorados em História, com um currículo de «encher o olho», resultante de «conhecimentos» de História que negam ter existido fascismo em Portugal.

Se fossem tomadas a sério as suas teses ter-se-ia de concluir que a unidade antifascista pela qual tanto se lutou e abrangeu sectores muito diversos da vida política, social e cultural, incluindo historiadores, não tivesse passado de uma ficção; que dezenas de milhar de portugueses D. Quixotes ignorantes tivessem toda a vida lutado para derrubar o fascismo, visto destruir as suas vidas profissionais e académicas, sujeitando-se a apodrecer nas cadeias anos e anos, tenham perdido as próprias vidas a lutar contra uma coisa que afinal nunca existiu.

E que tontos e ignorantes de História eram as centenas de milhar de portugueses que, nos momentos da conquista da Liberdade, o que mais gritaram, um grito que saía das entranhas de quem sofreu as
consequências da ditadura fascista, foi «fascismo nunca mais!».

Escândalo dos escândalos, afronta das afrontas à memória de tantas vidas seria ter pessoas destas à frente do Museu do Aljube.

Arguiu-se ainda contra a escolha de Rita Rato pelo facto dela ser política, por ter “uma carreira política”, o que a privaria da necessária independência, política e ideológica, suposta exigência para ocupar o cargo. Não seria preciso tantas mistificações para dizerem que Rita Rato não deve dirigir o Aljube pela simples razão de ser comunista.

A tese de historiadores independentes que apenas se guiam por factos históricos que não vêem a História segundo as opções políticas, ideológicas e natureza de classe, é uma canção de embalar.

Não às pessoas de direita mas aos que sinceramente se preocupam com os destinos da Liberdade e do regime democrático é necessário lembrar-lhes que a política da apologia da anti-política foi e continua a ser caldo de cultura no qual se desenvolvem as forças fascistas e fascizantes.

É igualmente necessário lembrar-lhes que fascismo e anticomunismo se alimentaram e alimentam como irmãos siameses e que o povo português e as forças democráticas pagaram um preço muito elevado pelo facto do fascismo ter usado até à exaustão a arma do anticomunismo para dividir as forças democráticas e as isolarem da força mais organizada e mais combativa na luta contra o fascismo que eram os comunistas.

A Drª Irene Pimentel manifestou-se muito receosa com o perigo que é a nomeação de Rita Rato poder levar à hegemonização da memória da Resistência pelos comunistas. Como historiadora, e se o anticomunismo não lhe tivesse toldado a mente, saberia que o perigo que se adensa não é os comunistas hegemonizarem a memória da resistência, é serem apagados dessa memória, por um processo de revisionismo histórico, apesar dos comunistas terem tido um papel único na resistência, pago um preço alto em clandestinidade, prisões, torturas e perdas de vidas sem comparação com qualquer outra força política; e, em certos momentos, chegado a ser 90% dos presos. Tudo teria sido mais fácil, os comunistas teriam sido menos sacrificados se outras forças não tivessem «hibernado» durante anos e anos, e se os comunistas não se tivessem encontrado muitas vezes quase sozinhos na luta contra o fascismo.

O lugar único que os comunistas ocupam na resistência, na luta pela Liberdade, não é o resultado de manobras políticas mas por terem, durante 48 anos, sido a força que manteve acesa a chama da esperança de que a Liberdade seria conquistada.

O fascismo aí está de novo em franco crescimento. A luta antifascista não é um problema do passado mas do presente. Esta campanha anticomunista, pela sua natureza, devia ser tomada muito a sério. Talvez seja altura de relembrar o aviso de Brecht sobre os «que foram primeiro».

O Museu do Aljube vai viver uma nova fase. Dispõe de uma equipa preparada e empenhada que, dando continuidade ao trabalho notável do Dr. Luís Farinha, será uma mais valia para a defesa dos valores e do projecto do Museu da Resistência e da Liberdade.

O Museu do Aljube, tal como o Museu de Peniche, deverão ser instrumentos de maior importância nesta batalha contra o renascer do fascismo. É por isso dever de todas as forças democráticas defendê-los.

Torna-se, entretanto, necessário fazer uma declaração de «interesses». Não sabia quem era o júri. Se a memória não me atraiçoa, apenas conheço um dos seus membros. Nenhum é comunista - o que teria
acontecido se fosse. Ao terem escolhido a candidata Rita Rato, na base exclusiva da sua avaliação pessoal, não se terem deixado empeçonhar pelo vírus anticomunista, deram mostras de coragem, de isenção política, contribuíram desse modo para o saneamento da vida
democrática.

Sejam quais forem as suas opções políticas, ideológicas, são dignos do respeito da parte de qualquer antifascista.

Domingos Abrantes - Membro do PCP e Conselheiro de Estado»

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