[Cipriano Dourado]

[Cipriano Dourado]
[Plantadora de Arroz, 1954] [Cipriano Dourado (1921-1981)]

quarta-feira, 22 de julho de 2020

[2392.] AMÁLIA - DITADURA E REVOLUÇÃO [I] || MIGUEL CARVALHO (2020)

* AMÁLIA - DITADURA E REVOLUÇÃO *

MIGUEL CARVALHO || 2020

Publicações D. Quixote

[Miguel Carvalho || Amália - Ditadura e Revolução || Publicações Dom Quixote || Junho de 2020]

O que torna esta exaustiva, rigorosa, inesperada e documentada biografia política leitura apetecível, proporcionada por Miguel Carvalho numa escrita fluente e coerente a que já nos habituou, não é a componente artística de Amália Rodrigues, mas o enquadramento histórico e os labirintos das múltiplas sociabilidades geridas até Abril de 1974 e que o Autor reconstrói, demonstrando como a artista, a par da sua "colagem" ao regime, contribuiu, tal como muitos outros e outras, para décadas de resistência antifascista sem estar comprometida politicamente com ela. Não se pode ignorar o que foram 48 anos de violenta repressão sobre quem mais se expunha a combater a Ditadura, bem como os custos, humanos e económicos, de quem assumia a luta clandestina, sendo que toda a ajuda era relevante e constituía, por si só, um acto de coragem. Mesmo que aparentemente pequeno, por vezes insignificante, era a soma de partilhas solidárias assim, anónimas, que permitiram aliviar, humana e economicamente, a subsistência de muitos presos políticos, suas famílias e outras vítimas do fascismo, a maioria conotada com o Partido Comunista, envolvido numa duríssima clandestinidade de décadas.

Se «a ditadura namorou-a, exportou-a, e Amália,  verdade seja fita, não se fez rogada», também «soube iludir vigilâncias e amarras, acudindo a opositores e resistentes ao regime, financiando famílias de presos políticos e cantando versos de autores proibidos, resgatando-os do silêncio e da perseguição» [p. 14]. Havia, afinal, "outras atitudes e outras acções", como lembrou José Saramago no dia da sua morte, quando interpelado em Paris, onde se encontrava para ser agraciado com a Legião de Honra. Atitudes e acções que valiam pelo seu fim, mesmo que o desconhecesse objectivamente, e que os intermediários tratavam de manter na confidencialidade compartimentada dos tempos, como sempre sucedera com muitos outros envolvidos em circunstâncias semelhantes. 

O que torna o livro surpreendente é a circunstância de Miguel Carvalho conseguir revelar "Uma Amália desconhecida", quando se pensava que quase tudo já tinha sido escrutinado sobre as suas andanças, ao conseguir expô-la enquanto interveniente "política" dual, rompendo com o estafado, mas compreensível, ferrete único de artista símbolo do Portugal salazarista. Se não «assumiu compromissos políticos e é completamente descabido atribuir-lhe a afeição por uma ideologia», «tal não significa [...] que fosse indiferente  à condição do seu semelhante ou se distanciasse de certos e constantes apelos» [p. 17].

[Miguel Carvalho || Amália - Ditadura e Revolução || Publicações Dom Quixote || Junho de 2020]

A par da captura e progressiva aceitação, promoção e aproveitamento, nacional e internacional, pelo regime, do convívio com aristocratas, detentores do poder económico e político, dos convites para solenidades privadas, da partilha de ambientes luxuosos tão longínquos da sua Alcântara onde nascera e crescera, Miguel Carvalho desvenda, num difícil equilíbrio, imperceptível até há pouco, uma Amália solidária com os que lhe batiam à porta a solicitar ajuda para os perseguidos políticos do mesmo regime que a publicitava, sem nunca a negar e sem querer saber a quem, verdadeiramente, se destinava: «Na verdade, durante todo este tempo houve também uma Amália clandestina, do outro lado do espelho. Num país que não era o das maravilhas» [p. 69].

«De facto, os contributos directos ou indirectos que a fadista sabia serem destinados a pessoas ou actividades clandestinas de oposição à ditadura remontam a meados da década de 1940» [p. 87], canalizados, inicialmente, através de figuras do meio artístico, que tinham suficiente confiança para a abordarem, sendo que a confidencialidade tinha de ser, sempre, assegurada. E, por vezes, eram quantias avultadas as disponibilizadas, chegando, mesmo, a doar jóias.

Amália Rodrigues terá começado por ajudar, com regularidade, o MUD Juvenil [p. 88], nascido em 1946 e que sobrevivia de pequenas quotizações e, sobretudo, de contributos de democratas. Depois, recolheram dela directamente donativos, em momentos diferentes, Maria Alda Nogueira, amiga desde os tempos da meninice e juventude em Alcântara; José Cardoso Pires; Varela Silva, seu cunhado, casado com Celeste Rodrigues; Manuel Augusto de Brito, o cabeleireiro de sempre; Rogério Paulo, que é «quem mais fará uso dos estratagemas encobertos para recolhas de dinheiro junto de Amália» [p. 187], fazendo-o desde antes da campanha de Humberto Delgado até aos anos 70; Veiga de Oliveira que, quando no Brasil, já recolhia dinheiro para a Oposição através de César Seabra, e continuou a fazê-lo em Portugal, mantendo contactos com o casal; Urbano Tavares Rodrigues; ou o actor José de Castro, igualmente comunista com quem convivia e de quem gostava muito; ou José Casanova.

Outra forma de apoio que Amália terá prestado foi mediante certos convites, como o feito a Carlos Paredes, integrando-o em deslocações internacionais. A solidariedade ia para além da componente política e estendia-se a muitos artistas, nomeadamente «velhos fadistas caídos em desgraça», segundo intervenção de Almeida Santos no Parlamento aquando da sua morte [p. 195].

[Miguel Carvalho || Amália - Ditadura e Revolução || Publicações Dom Quixote || Junho de 2020]

Assim como, ao cruzar Amália com meios intelectuais antifascistas, em resultado da renovação poética e musical do fado que cantava, desnuda e dá a conhecer redes e sociabilidades clandestinas nem sempre detectadas ou desmanteladas pela PIDE e cujo funcionamento, sob diversas capas, muito contribuíam para o combate possível à Ditadura.

Embora excessivamente conotada com o regime e com Salazar, por quem nutria admiração, a aproximação, bem evidenciada, a certos sectores oposicionistas fez com que também entrasse no grupo daqueles e daquelas que, de uma forma ou de outra, ajudou à resistência, sem nunca ter sido antifascista mesmo que cantasse fados cujas letras eram, por demais evidente, de conteúdo  antifascista. Aliás, nunca quis, propositadamente, saber a quem se destinavam os seus auxílios, albergados sob a capa da solidariedade humana, e não política, para com os presos, ex-presos e suas famílias, descomprometendo-se, assim, de ter de tomar posição.

Mesmo cantando "Abandono", mais conhecido por Fado de Peniche, foi esta circunstância duradoura de Amália Rodrigues se ter revelado esquiva a um pensamento político definido até Abril de 1974, optando por ambiguidades deliberadamente "ingénuas" que nunca a comprometeram publicamente com a Oposição, que avolumou a tormenta que teve de enfrentar após a Revolução. Os versos que dedicara a Salazar na sequência  do seu internamento, com enorme impacto negativo, ainda ecoavam na memória de muitos antifascistas aquando da data libertadora.

Perante uma Amália ambígua, adulada, comprometida e usada como estandarte pelo regime, sem o afrontar, e que nunca assumiu ou valorizou, nem em privado, nem publicamente, os seus próprios actos de solidariedade clandestina para com aqueles que a ela recorriam e o silêncio destes, imposto pelas próprias regras conspirativas, o 25 de Abril tinha tudo para não correr de feição para a artista, demasiado conotada com o que acabava de ser derrubado e, por isso, alvo das mais diversas acusações.

O sobressalto foi violento, o apaziguamento, se alguma vez o houve, revelou-se difícil e os silêncios, de ambos os lados, fizeram com que se tornasse impossível olhar para Amália como alguém que tenha auxiliado, financeiramente, comunistas na clandestinidade, a oposição e os presos políticos e suas famílias. No centenário do seu nascimento, Miguel Carvalho reescreve, com o rigor do recurso a documentos inéditos e entrevistas a quem com ela conviveu, este lado, sem dúvida mais luminoso, de uma Amália Rodrigues em tempos sombrios.

Revivendo aqueles dias, semanas e meses, dificilmente o choque que Amália enfrentou poderia ter sido diferente e mostra até que ponto estava desfasada da realidade política portuguesa. Num país há tantas décadas sob repressão e conquistada a liberdade para todos, não havia espaço para a diva do fado manter um estatuto, mesmo que artístico, intocável. Era o tempo daqueles a quem Abril abrira as portas.

Foi, pois, esta zona de penumbra que Amália Rodrigues soube cultivar em Ditadura que Miguel Carvalho se propôs, e conseguiu, desocultar, mantendo, em aberto, todas as reinterpretações possíveis. 


[João Esteves]

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