* ILSE LIEBLICH LOSA *
[20/03/1913 - 06/01/2006]
"Pensava em meu irmão"
(1951)
Ilse Lieblich Losa nunca abdicou da sua condição de cidadã atenta e interventiva, quer na Alemanha nazi, na Inglaterra antissemita do início da década de 30 ou no Portugal salazarista, salazarento e fascista.
Tomou, sem subterfúgios, partido em sociedades silenciadas, acarretando dissabores e enfrentando temores que não podem, nem devem, ser desvalorizados na contextualização global da sua obra.
Obrigada ao exílio, com apenas 21 anos acabados de fazer, desembarcou no Porto em Março de 1934, aí casou, em 1935, com o arquiteto Arménio Taveira Losa [Braga, 28/10/1908 - Porto, 01/07/1988] e não mais deixou de viver naquela cidade.
Podia ter-se resguardado quanto à exposição pública, cívica e política, tantas eram as experiências terríficas vivenciadas na sua Alemanha. Embora não deixasse de ser uma “exilada” ou uma “refugiada”, juntamente com o marido, associou-se à luta contra a Ditadura e foi rigorosamente vigiada, durante quatro décadas, pela PVDE (1933-1945), pela PIDE (1945-1969) e pela DGS (1969-1974).
Em 1939, o irmão Ernst, em fuga da Itália fascista, chegou a estar encarcerado cerca de quinze meses por, a partir de 1938, o governo português permitir a permanência dos refugiados por, apenas, três meses. Caso nesse espaço de tempo não obtivessem visto de saída, "eram expulsos ou detidos e, a partir de 1942, concentrados em Caldas da Rainha".
Ernst Lieblich, apenas um ano mais novo que a irmã, foi preso uma primeira vez em 18 de novembro, para averiguações, passando pela 1.ª Esquadra e Aljube; libertado em 7 de fevereiro de 1940, seria preso uma segunda vez, em 8 de março, “por ter sido notificado a abandonar o País e não o ter feito”, transitando, até 10 de fevereiro de 1941, entre a 1.ª Esquadra, Caxias e Aljube, até obter um visto de entrada nos Estados Unidos da América.
Talvez por isso, Ilse Losa tenha escrito o quase desconhecido poema “Pensava em meu irmão”, incluído em Grades Brancas, livro publicado em 1951, tendo por ilustrador Júlio Pomar, e que nunca quis reeditar:
«Quando a luz tímida anunciava o novo dia, pensava em meu irmão.
Imaginava-o a olhar o nascer do sol através do postigo gradeado.
Parecia-me vê-lo estremecer ao lembrar-se do tormento que o esperava.
E eu sabia que os seus olhos escuros estavam cheios de
tristeza e de saudade.
Quando à hora do almoço me juntava aos meus na nossa casa,
pensava em meu irmão. Imaginava-o dobrado sobre a tigela grossa,
comendo o magro rancho sem gosto. Parecia-me ouvir o berro brutal
do guarda para que ele se apressasse. E eu sabia que as suas mãos
largas se fechavam num gesto de revolta.
Quando à tardinha a chama da lareira nos aquecia amigavelmente,
pensava em meu irmão. Imaginava-o arrepiado de frio na cela
sombria e gelada. Parecia-me ver o seu rosto pálido, as mãos que
o ar áspero e cortante tornara rígidas. E eu sabia que cerrava os
dentes para não gritar o seu ódio surdo.
Quando na noite negra e triste estava estendido no leito, pensava
em meu irmão. Imaginava-o na tábua húmida e dura, que não
dava descanso ao seu corpo dorido. Parecia-me que o meu quarto se
enchia dos gemidos abafados nas mãos regeladas. E eu sabia que as
suas lágrimas quentes caíam amargamente como as minhas.
E, pela noite lúgubre, comunicava-lhe: «Sê forte, meu irmão! Não
tarda que as nossas mãos se unam de novo! Não tarde que o sol se
levante também para ti e que as tuas lágrimas se acabem. Hás-de
viver, irmão!»
Os meus pensamentos, penetrando a noite escura, alcançavam
meu irmão; fechavam-lhe os olhos ardentes como uma mão subtil
e fresca. E então o sonho, com as imagens de tempos idos, envolvia
no seu manto caridoso, por umas curtas horas, meu pobre irmão.»
[Ilse Losa, Grades Brancas (poemas em prosa). 1951. Lisboa: Centro Bibliográfico – Cancioneiro Geral, pp. 23-25]
Manteve, sempre, intensa e arriscada participação cívica, sozinha ou com Arménio Losa, enfileirando, a partir dos anos 40, nos movimentos de oposição ao Estado Novo, nome com que a Ditadura se baptizou a partir de 1933, constando, em 1970, no grupo fundador da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos (CNSPP).
[João Esteves]
Sem comentários:
Enviar um comentário