«A Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, interpretando as aspirações da minoria culta das mulheres deste país, e o sentir, embora inexpresso, da sua quase totalidade, mergulhada na mais crassa ignorância e na mais culposa atonia, resolveu na sua assembleia geral de 19 do corrente vir até vós, singelamente e democraticamente, para apresentar ao Governo Provisório da República as reclamações que mais urgentemente se fazem necessárias para entrarmos decisivamente num caminho largo e progressivo de renovação social.A situação da mulher em Portugal é, perante as leis e os costumes, a mais deprimente e vexatória para seres livres, mas nós não vimos expor teorias e problemas floreando estilo, vimos, apresentando as nossas justas queixas, reclamar aquilo que é do nosso mais imediato interesse, mas que interessa também a toda a colectividade portuguesa.As nossas palavras são simples, justas, concretas, resumindo cada uma delas uma aspiração libertadora, que em si contém séculos de servidão, sofrimento e vexame.Nós vimos pedir ao Governo Provisório da República, que é o legítimo Governo do Povo, eleito pelo esforço libertador de todos os que verdadeiramente amam a terra portuguesas, as leis que mais correspondem às necessidades imediatas da família e da mulher, individualmente, cidadã livre duma Pátria livre e respeitada.Para que a mulher portuguesa possa ocupar o lugar que nas sociedades modernas lhe cabe, necessário se torna que saia pela força impulsionadora das leis do impasse onde a monarquia a conservou, por tão dilatados e criminosos dias.Assim, sem querermos alongar-nos em considerações que estão no ânimo de todos os seres conscientes, passamos a resumir as nossas por agora bem modestas aspirações.
1.º - Entregando com esta as folhas de assinaturas que a nossa propaganda conseguiu obter para reclamar a lei do Divórcio, não precisamos de acrescentar quanto tal lei se nos afigura de urgente necessidade para moralizar a sociedade portuguesa, hipócrita e dissoluta como são todas aquelas em que o espírito reaccionarista domina.
O Divórcio é a lei mais urgente de quantas são pedidas pelos cidadãos portugueses. E neste pedido não são somente concordes os republicanos e livre-pensadores, por quanto nas listas encontrareis os nomes bem conhecidos de homens de todos os partidos do velho regimen, de todas as profissões e crenças. Essas listas, que contêm centenas de nomes, representam muito, obtidas, como foram, numa época de asfixiante tirania moral. Hoje essas listas seriam rapidamente cobertas por milhares de assinaturas. Assim servem melhor e assim vo-las entregamos para a história da nossa propaganda pela Liberdade, e pela República, o seu símbolo entre nós.
2.º - A Liga Republicana das Mulheres Portuguesas entende que a revisão imediata do Código Civil, essa velha legislação eivada do férreo espírito romano, que de modo algum corresponde às aspirações e ideais da sociedade em que vivemos, se impõe sem delongas. Mas desde já entendemos que devem ser eliminados os artigos seguintes, que mais vexatórios são para a mulher dentro da família e da sociedade.
Assim, os artigos: 1185, que manda às cegas a mulher prestar obediência ao marido, e o 1186, que a obriga a acompanhá-lo, não podem subsistir nas leis da República.O 1187, que proíbe a mulher de escrever sem autorização marital, cai por si, tão ridículo se tornou já. No entanto lá está no Código, e dele é necessário que saia, assim como não pode subsistir aquele que manda que à mulher seja necessária a autorização do marido para exercer qualquer indústria, comércio ou emprego.O artigo 1189, que dá a administração dos bens de casal ao marido, é a mais sangrenta das afrontas ao critério feminino.Nós pretendemos desde já que a mulher administre os bens próprios, que seja senhora do dinheiro pelo seu trabalho adquirido, e que a separação dos bens de casal seja a lei comum do país, fazendo-se o contrário só por disposição especial dos cônjuges ante ou pré-nupcial.Os artigos 1191 e 1193, que proíbem a mulher de adquirir ou alienar bens móveis e imóveis, ou fazer dívidas sem autorização do marido, agravados pelo artigo 1114, que ao homem dá todos os direitos, não podem continuar a subsistir, que isso seria uma vergonha para a República triunfante.
3.º - Todos os artigos que se referem ao poder paternal são vexatórios enquanto a mãe o não tiver igual, apelando-se para o juiz em caso de desacordo, ou para o conselho de família.
A mulher requer para si o sagrado direito de olhar, tanto como o pai, pela educação dos seus filhos, não querendo o seu nome eliminado em documentos de estudo oficial, como não prescindindo dos seus direitos de tutoria em igualdade de circunstâncias.Também não pode a mulher tolerar que os conselhos de família sejam formados por dois membros do lado materno e três do paterno, como preceitua o artigo 207, antes deve ser formado por dois membros de cada família e o quinto eleito por acordo dos quatro, ou escolhido pelo juiz em caso de divergência.Repugnante é também que o artigo 200 e seus parágrafos, preceituem a preferência dos tutores pela linha paterna.De justiça é que a mulher exerça o lugar de tutora e protectora tanto dos filhos e netos, nos mesmos termos do homem, como de quaisquer outros menores ou interditos, quando para o exercer seja julgada com capacidade intelectual e moral.A investigação da paternidade ilegítima, proibida criminosamente pelo artigo 130 do Código Civil, é daquelas leis sagradas que nenhum homem de consciência pode protelar. Mas a sua falta torna-se tanto mais odiosa quanto é injusto o artigo 131 que permite a investigação da maternidade, quando é a mulher que mais sofre perante a hipocrisia social com a apresentação dum filho ilegítimo, quando é a mulher, que, esbulhada de todos os empregos e profissões rendosas, deseducada e impotente para o trabalho honesto, mal tem com que se alimentar a si quanto mais alimentar os filhos, sem o auxílio masculino.
4.º - Insurgimo-nos nós, as mulheres, contra a excepção odiosa que nos proíbe ser testemunhas instrumentárias, sendo certo que a mulher, mormente no povo, é que em regra influi nas opiniões e depoimentos dos homens. Não se compreende que o Código ache capacidade na mulher para ser testemunha crime, de que pode resultar a condenação do seu semelhante, e lhe negue competência para testemunhar qualquer acto da vida civil, como testamentos, títulos de dívida, doações, etc., etc. Que a mulher não possa ser testemunha em actos da vida que de perto se prendem com a família, como o casamento e o baptizado civis, é tanto mais estranhável quanto a própria igreja católica a aceita como idónea nos mesmos actos por ela realizados.
Condenável é também que a mulher não possa estar em juízo sem autorização do marido, como preceituam o artigo 1193 e seguintes, todos atentatórios da dignidade humana, assim como não possa representar em juízo senão os filhos e netos de que for tutora e as causas próprias, isto quando as escolas não podem ser-lhe defesas e a mulher advogada se apresentará amanhã no tribunal, colocando os juizes numa situação ridícula. Igualmente é condenável que pelo artigo 819 à mulher seja defeso prestar fiança por outrem.Mais pretende a mulher que o júri, como instituição livre que é, uma das poucas que se conseguiu manter apesar de todo o ódio reaccionário de que foi vítima, seja daqui para o futuro constituído por indivíduos dos dois sexos, principalmente nas causas em que directamente forem interessadas mulheres e crianças.
5.º - Nada para estranhar seria, antes, pelo contrário, seria muito justo, que as mulheres portuguesas a cento e tantos anos depois da grande revolução francesa, fizessem suas as palavras do honesto e imortal Condorcet perguntando indignado à Assembleia Nacional: - em nome de que princípio eram as mulheres afastadas das funções políticas visto que as palavras representação nacional significam o governo da nação e as mulheres dela fazem parte tanto como os homens?!
Desejando, porém, que fique bem assente que em princípio nós achamos de toda a justiça que o sufrágio universal se estabeleça o mais depressa possível, com igualdade de direitos para homens e mulheres, - parecendo-nos injusto que se negue o voto à mulher a pretexto de que é ignorante, sabendo-se bem que o homem do povo não o é menos no nosso país, sem que por isso lhe seja tirada essa prerrogativa -, nós pedimos por agora, e para de modo algum entravar o governo da República, o voto apenas para toda a mulher que, sendo comerciante, industrial, empregada pública, administradora de fortuna própria ou alheia, diplomada com qualquer curso científico ou literário, escritora, tem todo o direito de exercer vigilância directa na vida política do seu país. Isto é tanto mais fácil de ser concedido quanto é certo que as mulheres que estão nessa situação especial são bem, infelizmente, raras em Portugal.E na mesma sequência de ideias, nós pedimos o direito de eleger e ser elegíveis para os cargos municipais, onde, sem dúvida, a mulher portuguesa há-de prestar os mesmos relevantes serviços que em outros países mais avançados as suas colegas vêm prestando à colectividade, sendo elementos progressivos e moralizadores.O mesmo se deve entender com todos os cargos da Assistência Pública, que tão tristemente abandonada tem estado entre nós, e onde a mulher pode e deve exercer a mais útil e benéfica das acções, auxiliando o governo da República em muita coisa, principalmente na resolução do problema da mendicidade das ruas, esse resíduo infamante duma sociedade em putrefacção, esse crime principalmente odioso quando se trata da exploração dos menores, vítimas inocentes da maldade e da estupidez dos grandes.Mais reclamamos contra as leis que abusivamente fecham às mulheres determinadas carreiras, ou, dentro das que lhes são permitidas, como as de telegrafistas, correios, professoras, etc., não lhes consentem, em legal concorrência com o homem, alcançar os lugares superiores.
6.º - Não podemos por agora fechar a série das nossas reclamações imediatas, sem protestar com todo o ardor da nossa alma contra a prostituição legalizada, essa medida degradante que imprime a uma parte da humanidade o ferrete da maior das ignominias.
Nós não podemos desejar que a República, pela qual trabalhámos na medida das nossas aptidões e forças, que aspirámos como a Libertadora, a Justiceira, a Purificadora da Pátria Portuguesa, tão nossa amada, mantenha como lei essa abjecção, que torna o Estado o guarda e o cobrador do dinheiro miserável dessa infamíssima escravatura branca.Enquanto o género humano consentir tal degradação, que rebaixa toda a mulher e não eleva o homem, nós não podemos deixar de levantar o nosso protesto e dizer a nossa revolta.Nós, as mulheres, temos mais do que vós o direito de protestar neste sentido, porque, embora desgraçadas, embora envilecidas, essas míseras criaturas (a maior parte das vezes vítimas da sociedade, que as abandonou, as perverteu, e por cima as despreza) pertencem ao nosso sexo.Eis aqui, cidadãos, o que a «Liga Republicana das Mulheres Portuguesas» nos encarregou de vir expor ao vosso autorizadíssimo critério e superior resolução patriótica, como minimum das nossas aspirações e reclamações, que se nos afiguram mais fácil e prontamente exequíveis.»
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