[Cipriano Dourado]

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[Plantadora de Arroz, 1954] [Cipriano Dourado (1921-1981)]

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

[0216.] REIVINDICAÇÕES FEMINISTAS [X] || 10/08/1915 - ASSOCIAÇÃO DE PROPAGANDA FEMINISTA E GRÉMIO CAROLINA ÂNGELO

* REPRESENTAÇÃO DA ASSOCIAÇÃO DE PROPAGANDA FEMINISTA AO GOVERNO E PARLAMENTO || 10/08/1915 *

[Falta a primeira parte da petição, por não existir o n.º 5 da colecção de A Semeadora na Biblioteca Nacional]

"[...]
No entanto a propaganda republicana deve muito às mulheres feministas porque ganhou, não pouco, moralmente, com essa voz que se erguia em nome duma enorme multidão de sacrificadas a clamar contra um regimen que se fechou no egoísmo da sua própria defesa e no egoísmo dos seus prazeres em lugar de abrir largamente a porta do progresso e caminhar de acordo com uma sociedade que sente em si própria energia e forças para retomar o seu lugar na vanguarda dos povos mais cultos.

Pela força das circunstâncias históricas cabe à República o inadiável dever de avocar a si o encargo de estudar a questão, conforme ela é colocada na balança social de todos os países, e pôr toda a sua isenção no desejo de a solucionar o mais justamente possível, preparando para os nossos filhos uma atmosfera mais pura, uma noção mais nobre da vida humana.

Quer os homens queiram quer não; quer eles compreendam a justiça da questão, chamada feminista, quer persistam no erro do seu feroz masculinismo, o problema social que impele a mulher para a luta, na conquista do pão de cada dia, não há forças humanas que o possam fazer recuar ou iludir. É o direito sagrado de todos os seres, que instintivamente procuram o seu alimento, sem o qual não podem subsistir.

Nós esperamos que a República, que é o regimen da igualdade, não siga o triste caminho da monarquia liberal, que não soube compreender o papel histórico que lhe cabia, e só tarde, muito tarde, reconheceu que um governo não pode viver, contrariando as aspirações dos povos, mas perfilhando-as, e auxiliando todo o progresso das ideias.

O regímen democrático que o povo português conquistou, não pelo capricho de mudar de rótulo governativo, mas pela aspiração forte de com ele mudar de processos e entrar definitivamente na civilização de que o tinham apartado, não pode, em nome de princípio algum, continuar a viver dentro duma sociedade unilateral, afastando as mulheres dos cargos públicos negando-lhes direitos, negando-lhes o próprio pão, porque lhes nega o trabalho que o conquista com honra.

A República não se furta, como regimen nenhum se furtou, em séculos e séculos de história, à influência feminina; mas nós, as mulheres que temos o orgulho sagrado do nosso sexo, repelimos a hipocrisia da influência vexante do harém e queremos a responsabilidade dos nossos actos e a prova da nossa competência para o trabalho nobilitador.

Eis em poucas palavras os motivos que nos levaram à resolução de vir até vós, com esta representação, que contém o mínimo das nossas reclamações mais urgentes.

Instrução

Sobre o problema capital da instrução primária há tudo a fazer no nosso país, tanto no que respeita ao ensino primário e secundário como ao profissional, doméstico, industrial e artístico.

Antes de mais nada, para se poder encetar um trabalho sério e honesto, parece-nos absolutamente indispensável fazer um inquérito rigoroso sobre o que é a instrução feminina no nosso país e as modificações que urgentemente se lhe devem introduzir para a pôr de acordo com as necessidades da vida actual e futura.

Assim como ao tentar-se remodelar uma velha cidade sem higiene e sem condições, que a harmonizem com as necessidades da vida moderna, é necessário começar por levantar a planta do existente - com suas ruelas escuras, os seus becos sem ar, a casaria em desequilíbrio - traçar sobre essa base, conservando o que for útil ou tradicionalmente belo, as linhas novas e harmónicas duma cidade inundada de luz, lavada de ares, higienizada pela vegetação, cheia de conforto e beleza; assim, para bem se legislar sobre a instrução e educação da mulher de amanhã é necessário estudar as bases sobre as quais se há-de edificar esta nova cidade.

Sobre a instrução primária feminina foi-nos dado expender as nossas ideias num pequeno relatório que a pedido do Em.mo Sr. Dr. Magalhães Lima, aquando ministro da Instrução, elaborámos e lhe foi entregue.

Já nele nos referimos ao trabalho patriótico realizado na Itália, tendo por base a instrução primária, quase exclusivamente confiada às professoras. Devemos acrescentar que na América do Norte após a grande guerra dos Estados, que chamou os homens ao combate, as escolas primárias foram entregues às professoras e de tal modo se desempenharam do encargo que ninguém mais pensou em retirá-las deste trabalho, que está perfeitamente em harmonia com as aptidões especiais da mulher. A guerra actual, tendo levado para a luta sangrenta grande número de professores primários, obrigou já a França a entregar às professoras as escolas de rapazes, sendo mais do que certo que lhe não serão retiradas após a guerra, tendo dado as melhores provas da sua aptidão para educar e formar os caracteres dos homens de amanhã. Também em Portugal a maioria do professorado primário é feminino, mas a mulher não é chamada a exercê-lo por ser uma posição honrosa, mas tão somente por ser mesquinhamente remunerada e injustamente considerada como inferior, socialmente falando.

A prova é o facto de não haver inspecção superior feminina, nem existir uma única senhora, havendo aliás dentro do professorado feminino muitas que são competentíssimas, na direcção ou no ministério da Instrução, donde tantas mulheres dependem e tantas têm que frequentar.

A falta de inspecção superior feminina, se é desastrosa sob o ponto de vista pedagógico é profundamente desoladora sob o ponto de vista moral, não dando ensejo à mulher de mostrar as suas qualidades de dirigente, visto que nem todas nasceram para ser exclusivamente dirigidas.

Sobre a Instrução Secundária: achamos conveniente a existência do liceu feminino nos termos em que existe o «Maria Pia», para ser frequentado pelas alunas da futura escola profissional, que acaba de ser criada, e pelas alunas cujos pais sejam contrários à educação mista, que em todo o mundo está dando os melhores resultados. Mas sendo o motivo de se advogar um liceu privativo para o sexo feminino o horror que há em Portugal - resto de uma educação monasticamente deformada - pelas escolas mistas, não se compreende que nesse liceu haja professores, havendo senhoras que aos lugares possam concorrer, porquanto, sob o ponto de vista sentimental, a acção do professor, aureolado pela superioridade da posição, pode ser mais nefasta do que a do condiscípulo e companheiro irmanado, sobre o espírito da menina, que está na idade romanesca em que ainda não há nitidez de ideias e firmeza de carácter para reagir contra a influência exterior.

Um liceu porém, não é suficiente para a população escolar e é contra os princípios de liberdade proibir a frequência feminina nos liceus masculinos até ao 5º ano, tendo que ser facultada no 6º e 7º ano, e tendo dado até hoje o melhor resultado em todos os liceus a camaradagem entre estudantes dos dois sexos, o que desmente cabalmente as opiniões de que o temperamento e a educação portuguesa não permitem as escolas mistas, usadas com vantagem em todos os países.

O decreto que ultimamente foi trazido a público criando uma escola Profissional anexa ao Liceu «Maria Pia», tem sido já motivo de discussões várias, cumprindo-nos a nós como mulheres, mais do que a ninguém, estudá-lo nas suas bases e nos seus efeitos futuros, sendo para lamentar que tanto se legisle em Portugal sobre assuntos femininos, sem que nenhuma mulher seja ouvida em nome das interessadas.

A escola Profissional que se criou, e bem pouco é para a necessidade da população feminina de Lisboa, preceitua muito bem que as suas alunas frequentem os três primeiros anos do curso secundário para adquirirem os conhecimentos gerais, hoje indispensáveis a qualquer pessoa medianamente culta. Mas para estas alunas não deve exigir-se uma classificação tão alta, como para as que pretendem conquistar somente o curso liceal. A frequência obrigatória, para estas alunas, das cadeiras privativas até ao 3º ano do liceu e como preceitua o artigo 1 do parágrafo 1º do decreto que criou a escola profissional anexa, não deve influir nas médias finais, sob pena de ser um estorvo ao desenvolvimento intelectual das mulheres, que se destinam aos estudos superiores.

É certo que há quem aplauda a criação da escola profissional anexa ao liceu, supondo que foi decretada só com o propósito de afastar as mulheres dos cursos superiores, "que são uma ameaça entrevista pelo autor do decreto".

Mas que justiça existirá em tal ponto de vista? Que direito têm os homens de afastar as mulheres da concorrência leal que elas procuram? Sejam rigorosos no ensino e exigentes nas provas, mas não ponham à entrada de cada profissão a questão sexual como um obstáculo, porque isso vai de encontro a toda a noção do direito moderno e da verdadeira democracia.

Se as mulheres frequentam as escolas superiores é porque deram as provas intelectuais que deram os homens e gastaram em propinas, e mais exigências de estudo, o mesmo que eles gastaram.

Negar-lhes o direito de chegarem intelectualmente até onde eles chegaram é querer dar à inteligência um sexo, o que científica e historicamente negamos. É sobretudo usar de um critério reaccionário, melhor diremos miguelino, que não se coaduna com uma República democrática como é a nossa.

A opinião pública actuou já, felizmente, sobre o critério legislativo, acabando-se, e muito bem, com a obrigatoriedade das cadeiras privativas no 4º e 5º ano do liceu «Maria Pia», mas a justiça não será completa enquanto não se decretar que as notas dessas disciplinas, nos primeiros três anos obrigatórias, não possam influir na classificação geral do ano lectivo. É absurdo que tal suceda porque a prática tem mostrado, que às vezes, da falta de aptidões artísticas ou manuais das melhores discípulas nas cadeiras científicas, resulta uma classificação inferior nas que pretendem seguir o liceu preparatório para os cursos superiores.

Atendendo mesmo ao ponto de vista mesquinho dos homens que ainda hoje têm medo à sabedoria feminina e a pretendem limitar aos trabalhos exclusivamente domésticos, a maior parte do que é ensinado no liceu e outras escolas e asilos, é absolutamente inútil e contraproducente.

Bordados e rendas para amadoras, como outras bagatelas que usam classificar de trabalho de senhoras, só até hoje têm servido para perverter o gosto estético da mulher e fazê-la perder um tempo precioso. As rendas e bordados, sob o ponto de vista artístico e industrial, num país como o nosso em que elas têm profundas raízes históricas, devem ser ensinadas nas escolas profissionais e nas industriais, como de facto são ensinadas em algumas, às mulheres que desejam fazer desse trabalho um modo de vida. Quem as quiser aprender, como luxo ou distracção, poderá pagar à sua custa, auxiliando com isso as professoras livres, que tão miseravelmente vivem do seu trabalho extenuante. Que utilidade podem ter estes trabalhos para a vida doméstica, nas meninas que frequentam o liceu? Só a inutilidade de gastar tempo e dinheiro. Igualmente é absurdo que a música seja ensinada obrigatoriamente no liceu havendo entre nós um Conservatório para os que sintam vocação para essa arte. Concordamos que o liceu tenha o seu orfeão como motivo de distracção, agrado e higiene, mas que não sejam as notas da música a tornar odioso o seu ensino, obrigando pessoas que não nasceram para artistas a essa disciplina, que não está em nossa mão compreender ou não compreender. Nos liceus masculinos também há orfeões e a música não é obrigatória. E o que se diz com a música sucede com o desenho artístico. Isto não é enobrecer a Arte é arrastá-la até ao ridículo.

Se a frequência dos liceus masculinos fosse permitida às meninas em Lisboa, como é no resto do país, sem que a moralidade, tenha até hoje perigado, os pais tinham a faculdade de escolher a orientação a dar ao ensino das suas filhas; assim é uma violência inquisitorial, que não pode manter-se.

O liceu feminino com a sua frequência de 988 alunas, abrigadas numa casa que não serviu para os rapazes; desguarnecida, desmobilada, tristonha, sem recreio, sem cerca, com os seus trabalhos e habilidades, que nada servem para a continuação do curso preparatório, não tem razão de existir. Em lugar dela criem-se as escolas profissionais e domésticas, mas sob o ponto de vista económico, que não artístico, nem literário.

As Escolas domésticas e profissionais devem ser adaptadas ao nosso meio, pouco nos importando o que se faz no estrangeiro, precisando ter uma orientação prática em harmonia com os poucos recursos e muitas necessidades da vida portuguesa. É aí que de deve ensinar a cozer e a trabalhar, não só as que serão mais tarde profissionais, como todas as mulheres. Porque rendas e bordados bem se dispensa qualquer de os fazer, mas de cozer a sua roupa ninguém se pode dispensar, a não ser que seja rica ou ganhe com outro trabalho para pagar à costureira. É nessas escolas que se aprende higiene, economia doméstica e cozinha, não teatralmente para os outros verem, mas teórica e praticamente, conhecendo o valor dos alimentos, sabendo o seu preço, procurando por si próprias a sua melhor utilização. Mas como em Portugal é de uso lembrar sempre o que se faz no estrangeiro, também nós evocamos uma escola profissional e doméstica que o governo de S. Paulo criou num dos seus bairros mais populosos e que achámos bem instalada e organizada. Tem oficina de rendas e bordados, de chapéus e flores, de vestidos e roupa branca, tanto própria como de casa, e uma esplêndida cozinha organizada a sério, onde as educandas vigiam o asseio e conservação dos utensílios. Cada dia sai uma ou duas com a professora ao mercado escolher e comprar as provisões, sendo obrigada a organizar as refeições conforme o dinheiro de que dispõe e a qualidade de alimentos de que há-de servir-se.

Além destas provas práticas tem boas aulas teóricas, compreendendo o ensino geral.

O decreto a que já nos referimos para criação da escola doméstica parece-nos bem orientado, assim na prática se olhe mais ao trabalho sob o ponto de vista da utilidade positiva que trará às futuras educandas, que na maioria dos casos têm de fazer da sua educação uma fonte de receita. Quer casem, quer não encontrem companheiro para o seu lar, as condições económicas da vida portuguesa são cada vez mais dolorosas, não se dispensando, senão raramente, o trabalho remunerado da mulher, a não ser que se prefira continuar a vida de miséria dourada, que tem anemiado e esterilizado a pequena burguesia das cidades.

Este curso, de que podem sair professoras, empregadas do comércio, boas criadas que tanta falta fazem à família portuguesa, e tanta garantia teriam na emigração a que as nossas mulheres se vêem já forçadas, e outras que procuram profissões tão honestas e dignas como estas, deve fortificar no espírito das educandas a convicção de que o seu trabalho deve ser considerado um capital para o futuro.

Aplaudiríamos entusiasticamente a criação desta e muito mais escolas profissionais e domésticas se não estivéssemos habituadas a ver falseadas as melhores iniciativas, esterilizadas pelo quase nulo espírito utilitário e prático, que os homens constantemente demonstram no nosso país.

Sobre o mais ensino feminino em Portugal nada nos cumpre dizer sem o inquérito que começamos por preconizar, visto que, a não ser as Escolas normais, os cursos são mistos, cabendo-nos reclamar para as que deles saiam, igualdade de direitos perante a concorrência leal.

Assistência

É com profunda mágoa que abordamos este assunto porque ele nos dá uma bem triste ideia da pouca consideração que a República tem pela mulher, que tanto para o seu estabelecimento concorreu. Ela tem sido afastada de toda a cooperação oficial, negando-se-lhe o direito da auxiliar eficazmente na sua obra de progresso e levantamento moral. Especializamos os trabalhos da Assistência Pública onde, afigura-se-nos, a sua acção benéfica não pode ser contestada nem substituída.

As sociedades mais tradicionalistas, os regimes mais reaccionários não têm negado à mulher o direito de cooperar nas obras de filantropia pública - nega-lho a República Portuguesa!

A Assistência Oficial organizada por efeito de leis bem intencionadas e profundamente humanas, resultou essa coisa áspera, burocrática, exercida sem amor, sem carinho, sem delicadeza para as dores dos humildes e sem respeito para os que sem interesse pessoal, e só para aliviar dores alheias, a procuram, porque não há outra coisa para onde apelar, visto que, burocraticamente, chamou a si todas as grandes fontes de receita e todas as pequeninas fontes públicas de onde escorria um fio consolador de solidariedade humana. E a Assistência oficial é isto que toda a gente constata, e todos reconhecem improfícua, porque lhe falta o espírito disciplinado, carinhoso, justo e tolerante da mulher.

Se quando nos interessamos pelas questões sociais e políticas, ou procuramos singularizar-nos estudando cursos superiores, ou reclamamos direitos, nos enviam desdenhosamente para os assuntos privativos do nosso sexo e para a família (que muitas não têm, nem podem ter) como se compreende que da Assistência Pública, que é a grande família dos desgraçados, nos afastem com uma crueza ofensiva do brio e dignidade das mulheres da altiva raça portuguesa?!

Se da filantropia oficial somos afastadas, podemos um dia, cansadas de injustiças, recusar-nos a colaborar na obra de solidariedade e filantropia particular, à qual tantos e tão grandes serviços tem prestado o nosso sexo em Portugal, desde a criação das misericórdias, obra admirável de uma mulher, até às cozinhas económicas, obra doutra mulher.

A história da beneficência no nosso país é honrosa para as mulheres, não só como manifestação de bondade caridosa, mas também sob o ponto de vista largo de solidariedade social. Aí está para o provar o sanatório de Parede, obra do dinheiro e do espírito de uma senhora, aí está o testamento que a Misericórdia de Lisboa vai executar, construindo um bairro pobre em Lisboa, com a herança de uma senhora.

É flagrante injustiça afastar a mulher portuguesa de colaborar nos trabalhos da Assistência Pública, sendo o único país civilizado em que tal sucede. A lei que criou a Assistência é uma das que mais honram a legislação da República, cumprindo aos seus governos vigiar a sua execução e melhorá-la sempre na prática. Afastar as mulheres dos lugares de dirigentes, numa obra de justiça e de carinho, é fazer uma odiosa coisa, contra a qual não podemos deixar de reclamar.

Funcionarismo

Entramos nesta questão, apesar do ridículo quadro que existe no país de funcionários femininos, porque há uma classe, Correios e Telégrafos onde há anos se cometeu a injustiça de cortar o acesso às mulheres, continuando sem protesto esse lamentável estado de coisas. Não discutimos se as empregadas existentes têm direito a subir aos lugares superiores, porque não conhecemos nenhuma, mas discutimos a injustiça que faz do sexo um motivo de inferiorização, numa carreira em que as provas são iguais.

Nesta profissão onde as mulheres têm demonstrado ultimamente tão altas qualidades de sangue frio, cumprindo heroicamente o seu dever perante a guerra, em momentos difíceis e perigosos não largando o seu posto, não pode continuar a subsistir a injustiça de somente lhe ser permitido em Portugal exercer lugares inferiores, porque naturalmente isto faz com que só pessoas modestas e muito necessitadas escolham tal profissão, que tanto pode ser exercida por homens como por mulheres.

O funcionarismo, que representa uma profissão naturalmente indicada para o sexo feminino por ser, mais do que outra qualquer, sedentária e com relativamente poucas horas de serviço o que lhes dará azo a não abandonarem a sua vida doméstica, é exactamente aquela que mais lhes é disputada, o que desmente, em absoluto, as palavras amáveis de muitos homens - que não querem que a mulher exerça serviços pesados, que a desfeiam - nada se importando que morram de fome ou se arrastem miseravelmente pelas ruas.

Nos países hoje em guerra o problema simplificou-se pela desgraça imensa que arrasta os homens para a luta e para a morte; no nosso país temos esperança que a ideia irá ganhando terreno e que os nossos homens, mesmo sem irem para a guerra, procurem profissões mais compensadoras, que requerem outra energia e outras iniciativas, largando às mulheres essas, que elas tão meticulosamente sabem desempenhar. A República nada tem feito neste sentido, pois além de 15 lugares inferiores na Contabilidade e dois lugares na Biblioteca Pública em condições injustamente inferiores aos colegas masculinos, pouco mais nos conta que exista.

Direitos Políticos

Resta-nos falar dos nossos direitos políticos, tão discutidos e contestados pelos homens Portugueses.

Devemos considerá-los sob dois pontos de vista, ambos de maior interesse para nós. Em primeiro lugar como princípio de absoluta justiça que interessa colectivamente as mulheres de todo o mundo, e já por esse motivo temos o dever de os defender e propagandear.

No que diz respeito ao nosso país, em que o vício da política é endémico, devemos convencer-nos que nem um passo avançaremos na conquista do nosso direito de cooperar na sociedade portuguesa se não tivermos voz no parlamento, onde a acção da mulher, a exemplo do que sucede com outros países, só pode ser benéfica à sociedade.

Antes mesmo de se abrir largamente o eleitorado feminino podia e devia dar-se elegibilidade a mulheres cujo valor excepcional merecesse tal reconhecimento público, como se faz na Noruega. Porque é mais fácil encontrar uma mulher que se distinga, do que criar o grande eleitorado, embora contestemos a opinião de que a mulher não está preparada para exercer os direitos políticos, num país em que o homem não o está melhor! Mas nada se opõe e que a experiência comece a ser feita administrativamente fazendo-se entrar com discrição nas juntas de Paróquia, onde o seu papel está bem marcado no exercício da assistência, que lhes compete.

A seguir devem abrir-lhes lugares nas Câmaras Municipais onde, estamos certíssimas, há senhoras por esse país fora que desempenharão com benefício para os munícipes, esses lugares de tanta responsabilidade e onde se requer um grande amor à terra portuguesa, que nas mulheres é proverbial.

É com a sua entrada nas municipalidades que devemos contar para fomentar o ensino agrícola feminino, o desenvolvimento das indústrias locais, o interesse pela instrução, assistência e cooperativismo rural de que tanto precisa um país, que se afirma ser agrícola, e vive sem agricultura!

A República necessita chamar a si a mulher proprietária, a cultivadora, a industrial, que é em toda a parte uma força respeitada. Será ela que nos ajudará a desenvolver a agricultura e as correlativas indústrias, será ela que chamará a proletária à associação, que lhe ensinará o caminho a seguir para por sua vez ser uma força civilizadora no lar. Será nela que as professoras femininas encontrarão apoio para a sua alta missão social.

Desprezar a acção das mulheres é preciso ponderá-lo, é desprezar mais de metade das forças vivas da nação, que não se compõe só do Terreiro do Paço, mas dos seis milhões dos seres pensantes que representam a população portuguesa.

Nenhum mal virá à República, antes pelo contrário, concedendo o voto às mulheres diplomadas em cursos superiores, como afirmação do princípio do sufrágio universal.

Na legislação passada deu o Senado a sua aprovação a esta lei, sendo motivo para louvar os homens que tão bem compreenderam o interesse moral da República em a estabelecer.

Alegar o espírito reaccionário da mulher não é motivo bastante, porque provado está que o homem não é menos reaccionário e conservador - ou talvez ainda o seja mais - no nosso país. De resto, para criar o verdadeiro espírito republicano é necessário criar amor à República e esse só se pode fomentar interessando a mulher moral e economicamente na vida colectiva, dando-lhe direitos e criando interesses próprios.

Ao voto da mulher não se opõe a Constituição, antes pelo contrário o estatui, de facto, dando-o a todos os cidadãos portugueses no art. 74.

Para nos afastarem escandalosa e violentamente das urnas, depois do poder judicial nos ter concedido o voto, foi necessário expressá-lo nessa triste lei eleitoral que foi modificada e remendada várias vezes, e há-de ser posta de parte quando lhe tornarem a tocar.

A República não tem chamado a si a mulher nem auxiliado aquelas que o podiam fazer influindo pelo seu exemplo e pela sua propaganda. Eis um erro de que não pouco já tem sofrido! Mais teríamos que dizer, porque mais e muito mais temos que reclamar até chegarmos ao ideal de justiça que nos norteia, mas não queremos por agora desenvolver mais assuntos que não possam, como estes, ter imediata solução.

Para eles reclamamos a vossa atenção; e do alto critério de justiça de que sois dotados, esperamos que algum bem virá para o nosso sexo, o que equivale a dizer - para a pátria e para a sociedade portuguesa, que necessita unir-se no mesmo ideal de grandeza e civilização futura.

Pela Associação de Propaganda Feminista

A Presidente
 
Elzira Dantas Machado

Pelo Grémio Carolina Ângelo

A Presidente

Ana de Castro Osório 

[“Representação ao Governo e ao Parlamento português”, A Semeadora, n.º 6, 15/12/1915; n.º 7, 15/01/1916; n.º 8, 15/02/1916; n.º 9, 15/03/1916; n.º 10, 15/04/1916; n.º 11, 15/05/1916; e n.º 12, 15/06/1916]

[João Esteves]

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