* A PIDE INTERESSAVA-SE POR ANTERO DE QUENTAL: UMA CONFERÊNCIA DE EDUARDO LOURENÇO *
Paulo Marques da Silva
O texto que se segue é da autoria do Historiador Paulo Marques da Silva, o qual se tem dedicado a investigar os arquivos da PIDE/DGS, tendo publicado dois livros marcantes: Fernando Namora por entre os dedos da PIDE. A Repressão e os Escritores no Estado Novo [Minerva Coimbra, 2009] e A PIDE e os seus informadores. O caso de Inácio [Palimage, 2019].
O apontamento publicado incide sobre uma conferência realizada por Eduardo Lourenço em 16 de Abril de 1971, em Coimbra, e que resultou num detalhado relatório da PIDE, incluindo conteúdo e assistência.
Agradecemos ao Autor a pronta disponibilidade para dar a conhecer uma pequena parcela da acção repressiva da PIDE, sempre atenta aos mais pequenos pormenores de quem ousava opor-se à Ditadura.
A PIDE INTERESSAVA-SE POR ANTERO DE QUENTAL: UMA CONFERÊNCIA DE EDUARDO LOURENÇO
Paulo Marques da Silva
No meu trabalho A PIDE e os seus informadores, o caso de Inácio, já tínhamos feito uma referência a este notável pensador português, recentemente falecido, quando este era ainda Professor Assistente de Filosofia, na Universidade de Coimbra. Corria então o ano de 1952, quando aquele informador definia Eduardo Lourenço como um “simpatizante avançado”, companheiro assíduo dos “comunistas” Paulo Quintela, João Farinha, Joaquim Namorado e Egídio Namorado, e que nas anteriores eleições, de 1945 e 1949, se “manifestara sempre a favor da oposição”. Concluía Inácio que Eduardo Lourenço fazia parte “do já extenso quadro de professores da Universidade anti-nacionalistas”.
Quase vinte anos depois destas notas, da autoria de Inácio, Eduardo Lourenço, então a residir em França, deslocou-se a Portugal para proferir algumas conferências sobre Antero de Quental, tendo vindo também à cidade de Coimbra. E, duas décadas volvidas, mesmo estando ausente do país, Eduardo Lourenço continuava a merecer toda a atenção da PIDE/DGS, que não deixou de estar presente na conferência que decorreu na cidade do Mondego.
Não posso deixar de relembrar a vigilância muito marcada que a PIDE/DGS movia aos professores universitários (e não só, obviamente), na Universidade de Coimbra, que sabia serem críticos do regime vigente, como foram os casos de Paulo Quintela, Joaquim de Carvalho, José Silva Dias, Aurélio Quintanilha, Orlando de Carvalho, Sílvio Lima ou Mário Silva, entre tantos outros.
Em jeito de homenagem a este prestigiado crítico e ensaísta literário, publica-se aqui a transcrição integral deste documento da PIDE/DGS – uma informação da delegação de Coimbra para a sua sede, em Lisboa - adiantando, desde já, que o resumo da conferência efectuado pela PIDE até nos surpreende um pouco, face ao nível dos relatórios policiais que estamos habituados a ler, e onde é notório o défice de instrução de uma larga percentagem dos elementos desta Polícia:
«Exmo Senhor
Director Geral de Segurança
Lisboa
21/4/71
CONFERÊNCIA DO DR. EDUARDO LOURENÇO DE FARIA, NO TEATRO GIL VICENTE DE COIMBRA
Tenho a honra de levar ao conhecimento de V. Ex.ª que o convite do TEUC – Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra – em comemoração do seu primeiro centenário, deslocou-se a Coimbra o DR. EDUARDO LOURENÇO DE FARIA, professor da Universidade em Nice que veio a Portugal a convite da Fundação Gulbenkian, para proferir num dos seus auditórios em Lisboa, uma conferência integrada nas comemorações do “CENTENÁRIO DA GERAÇÃO DE 1870”, conferência que repetiu nesta cidade de Coimbra, versando o tema “ANTERO, UM POETA FILÓSOFO”.
A conferência teve lugar no Teatro Gil Vicente, em Coimbra, no dia 16 do corrente mês, pelas 18 horas, assistindo cerca de 350 pessoas entre as quais se viam alguns professores da Universidade de Coimbra, como os doutores:
PAULO MANUEL PIRES QUINTELA
ORLANDO ALVES PEREIRA DE CARVALHO
VICTOR RAÚL DA COSTA MATOS
AMÉRICO DA COSTA RAMALHO
JOSÉ SEBASTIÃO DA SILVA DIAS
e estudantes.
Abriu a sessão o estudante JOÃO MANUEL CANIÇO DE SEIÇA NEVES, do TEUC, que se congratulou pela presença do conferencista em Coimbra, agradecendo a anuência ao convite que o TEUC lhe dirigira, explicando as razões porque fora o TEUC a patrocinar a sua vinda a Coimbra.
Referiu, ainda, o estudante JOÃO MANUEL CANIÇO DE SEIÇA NEVES, lendo um texto anteriormente aprovado em reunião de elementos do TEUC, que este sofrera uma interrupção num momento de repressão e terror em que alguns colegas foram encerrados na “Cadeia pidesca de Caxias” mas que esta conferência seria como que o reinício das suas actividades teatrais.
Referiu-se o estudante SEIÇA NEVES também ao Teatro Académico Gil Vicente, dizendo que este era explorado para fins comerciais, quando deveria ser entregue aos estudantes.
O conferencista foi, depois, apresentado pelo Prof. Dr. VICTOR RAÚL DA COSTA MATOS, da Faculdade de Letras de Coimbra, seu antigo aluno, que se referiu à actividade do professor em Coimbra e à sua vasta obra realizada nesta cidade.
O DR. EDUARDO LOURENÇO DE FARIA, iniciou depois a sua conferência, tendo antes agradecido o convite do TEUC, que assim como afirmou, lhe proporcionara voltar a contactar com os estudantes de Coimbra, outros que não os da sua geração, mas da mesma forma conscientes das suas obrigações.
Desenvolveu, em seguida, o tema já referido – “ANTERO, UM POETA FILÓSOFO” – numa análise bem esquematizada do Homem e do Poeta, da posição que ocupou na “Geração de 70”, sua formação e influência, afirmando: “Na medida em que Antero de Quental abre, entre nós, o período da sua consciência infeliz (histórica, cultural, e ideológica) que ainda não fechou, o seu destino permanece exemplar”.
Esboçou depois a figura do poeta e do filósofo, acentuando: “Não se pode dizer que Antero tenha sido esquecido. O que aconteceu à sua imagem foi partir-se em dois bocados do que havia no original. As diversas e opostas interpretações acentuaram, até torna-las incomunicáveis, as suas famosas contradições”.
E mais adiante: “Reencontrar, sem arbítrio, a linha que une o profeta do Socialismo e o cantor da Morte, o filósofo idealista e o poeta do «sentimento trágico da vida», o militante convicto e o suicida, não parece propósito inviável”.
Justificando, depois, o exame da personalidade, afirmou: “Com a condição de abandonar ao seu histórico papel de máscaras pouco inocentes as exegeses biográficas, psicológicas ou intelectualistas, cuja função comum consiste em desviar a compreensão de Antero do «sentido histórico» que ela exige: Antero não foi uma peripécia trágica, salva do anonimato por alguns poemas imortais, mas uma experiência histórica da consciência portuguesa cujo sentido cumpre interpretar e, acaso, reassumir”.
E prosseguindo: “O que nós propomos é, em termos próprios, uma leitura política de Antero de Quental, na qual, obviamente, «político» nem é sequer o mais relevante”.
A concluir, o DR. EDUARDO FARIA afirmou: “É a única homenagem que nos parece convir ao Poeta que subtraiu, com consciente propósito, a literatura às delícias do que, até ele, se chamava, justamente, literatura”.
Na sala foram referenciados os seguintes estudantes:
JOSÉ AURÉLIO DA SILVA BARROS MOURA
DOMINGOS MARTINS MORIM LOPES
ÁLVARO CORREIA VILAS
MARIA FERNANDA BRÁS
MARIA FERNANDA DE OLIVEIRA MAGALHÃES MATEUS
VICTOR MANUEL ALVORINO NEVES
Um tal HENRIQUE BARRETO e
RAÚL MANUEL GOUVEIA BORDALO JUNQUEIRO
A bem da Nação
Coimbra, Delegação da Direcção-Geral de Segurança, 21 de Abril de 1971.
O INSPECTOR
Armindo Ferreira da Silva»
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