* INTERVENÇÃO DE JOÃO ARSÉNIO NUNES SOBRE BENTO GONÇALVES || 2006 *
[Alberto Vilaça || Bento Gonçalves. Inéditos e Testemunhos || Edições Avante!, 2003]
Em Outubro de 1927, aquando do décimo aniversário da Revolução de Outubro, deslocou-se à Rússia, tendo Alberto Vilaça inserido uma fotografia desse tempo no seu livro dedicado a Bento Gonçalves [Edições Avante!, 2003]. Esta fotografia da Delegação Portuguesa ao Congresso dos Amigos da URSS consta dos Arquivos em Moscovo, tendo João Arsénio Nunes obtido uma reprodução [p. 66].
«Em 2006 o Zé Neves organizou no Iscte uma série de colóquios sobre figuras do pensamento marxista, em que me coube falar sobre Bento Gonçalves. Gravei a minha fala e depois ainda a transcrevi, na intenção de publicar como artigo, o que não cheguei a fazer. Aqui fica a transcrição, em que as passagens representadas por uma sequência de pontos correspondem a trechos que não eram claros na gravação ou se destinavam a ser mais elaborados.
BENTO GONÇALVES
Falar de Bento Gonçalves como figura do marxismo do século XX – aliás foi uma proposta minha – não deixa de ser uma tarefa complexa, e peço desde já desculpa pelo carácter algo fragmentário da minha intervenção. É claro que não há no contexto internacional grandes figuras portuguesas do pensamento marxista, mas incluir Bento Gonçalves acrescenta alguns problemas. Em primeiro lugar, é um homem que foi toda a vida militante sindical e depois dirigente político, quer dizer, não há nele qualquer obra teórica que transcenda estas dimensões de actividade. Por outro lado, os condicionalismos da sua origem social e cultural faziam com que fosse praticamente impossível um torneiro mecânico português tornar-se uma figura de relevo no panorama da história das ideias. Se no entanto fiz esta proposta – e acho que foi justo fazê-la – foi por considerar que a figura de Bento Gonçalves tem importância na história do movimento comunista português. As qualidades pessoais que o distinguiram são de um modo geral conhecidas, até pela tradição oral dos militantes sindicalistas e comunistas que com ele contactaram. Porém, o conjunto da produção escrita de Bento Gonçalves supera bastante aquilo que dele é em geral conhecido. Através não só do estudo da imprensa, mas sobretudo da consulta dos arquivos da Internacional Comunista, tive a possibilidade de constatar que a massa dos seus escritos é talvez o dobro, ou mais, do que aqueles que foram até agora publicados. Os textos até aqui conhecidos são essencialmente de duas ordens. Primeiro, dois opúsculos publicados ainda no tempo da clandestinidade pelo Partido Comunista, Palavras Necessárias e Duas Palavras, ambos de análise histórica, o primeiro abarcando as origens do movimento operário português e em especial do PCP, até 1927, às vésperas da entrada do autor para o Partido, o segundo – também às vezes referido sob o título “Intervenção sobre doze anos de actividade” – dedicado à análise do período de direcção de Bento Gonçalves no PCP, ou seja, entre a reorganização de 1929 e a altura em que o texto é escrito, 1941, um ano antes da sua morte. Já depois do 25 de Abril, foi também publicado um volume com um conjunto de textos dos anos 1927-1930, publicados nos jornais O Eco do Arsenal e O Proletário. O resto são peças de menos importância.
Mesmo o volume de divulgação da CM Montalegre não acrescenta praticamente nada a isto. No arquivo do Comintern encontra-se uma série de correspondência trocada nos finais dos anos 20 entre militantes do Partido, quer dizer na época da reorganização de 1929, e sobretudo muita correspondência dos órgãos dirigentes do Partido, bem como das organizações periféricas, para o Comintern, e entre ela encontram-se muitos escritos assinados por pseudónimos de Bento Gonçalves. Deve ainda mencionar-se, neste capítulo das fontes, a existência de textos de Bento Gonçalves na imprensa da Internacional Comunista, nomeadamente nos jornais de língua alemã Inprekorr e Rundschau. É ainda de mencionar que um dos editores de escritos de Bento Gonçalves foi a Legião Portuguesa que, nos seus cursos, também incluía a informação sobre a história do PCP e, a este título, editou as Palavras Necessárias e as Duas Palavras, devendo referir-se que esta edição das Duas Palavras é mais completa que a publicada pelo PCP na clandestinidade e depois reproduzida pelas edições A Opinião (Porto, 1976). Há ainda a considerar os muitos artigos da imprensa comunista clandestina dos anos 30, não só do Avante! mas também de outros boletins que o PCP editava. Esta dispersão do corpus das fontes primárias torna naturalmente complexa a descrição da unidade de um pensamento, como a que é possível fazer, através dos seus livros, para os teóricos do marxismo que foram até aqui discutidos nestas sessões. Quanto às fontes secundárias, deve assinalar-se como especialmente interessante o artigo de António Pedro Pita publicado na Revista Crítica de Ciências Sociais em 1994 sobre “O Marxismo na Constituição Ideológica e Política do Partido Comunista Português”, no qual a análise dos escritos de Bento Gonçalves é feita no contexto mais amplo do neo-realismo e do pensamento marxista em Portugal. (Tb: JBFreire e Sandra Monteiro).
Bento Gonçalves nasceu em 1902 em Fiães do Rio, concelho de Montalegre, filho dos caseiros da morgada de Fiães. Órfão de mãe. Em 1913 veio para Lisboa e começou a trabalhar como torneiro de madeiras, em 1918 passou a torneiro-mecânico, portanto operário metalúrgico, e em 1919 ingressou no Arsenal de Marinha, primeiro como aprendiz, mas ascendeu rapidamente em virtude da competência profissional demonstrada. Aspecto que sempre constituiu para ele motivo principal de identificação pessoal. Por exemplo, num conhecido escrito da prisão, a Contestação à nota de culpa do TME, ele procede a uma reconstituição completa da sua biografia em que faz questão de destacar justamente a dedicação à profissão, que lhe valera um convite para substituir o agente técnico inglês (citação). Este aspecto do empenho na competência profissional, que o tornou muito conhecido não só entre camaradas de profissão e os operários do Arsenal como também pelos patrões e pelas autoridades prisionais que mais tarde, no Tarrafal, o encarregam de tarefas difíceis, não é obviamente um traço de carácter exclusivo dele, pelo contrário, encontra-se com frequência nesta geração de militantes operários de formação sindicalista, para os quais a causa operária era em primeiro lugar e de forma concreta a recuperação ou reconquista da dignidade do trabalho, de emancipação das várias formas de alienação …… Isto perpassa em vários aspectos dos escritos, sobretudo dos primeiros escritos de Bento Gonçalves, e a meu ver vai também marcar a concepção política que ele mais tarde elabora e é um dos veios explicativos da profunda desafecção em relação à política tradicional que caracteriza o seu pensamento, em relação ao envolvimento em posição subalterna de comunistas em tentativas de putsch nas quais, antes da direcção de Bento Gonçalves, o Partido Comunista andara envolvido.
Este tipo de concepção, baseada numa ideia de reconquista pelos produtores do perfil e do sentido da produção, que é depois estendido a uma concepção da mudança social como recuperação da autonomia de decisão de cada um e de todos sobre o seu destino, aproxima-se – se pensarmos num confronto com outros teóricos do marxismo ? - da concepção de um Gramsci que, tendo tido um percurso social diferente, embora de homem pobre mas também oriundo de um meio rural, que nunca foi operário mas que, por outra via, chegou muito cedo a uma identificação profunda com o movimento operário em Turim. Nos seus escritos de juventude, o produtivismo, i.e. a identificação com o produtor, a revolução como emancipação num sentido concreto, i.e. realização máxima das capacidades de gestão dos produtores, é um traço fundamental. E também pelo Gramsci diferente e algo?, com a temática da emancipação num processo que tende para uma projecção da revolução social que vai pôr em causa a ideia clássica de tomada do poder, para a ver como um processo de reapropriação em todos os domínios sociais e designadamente culturais. Este paralelo pode parecer por natureza forçado, visto que Bento Gonçalves nunca conheceu Gramsci… Trata-se de personalidades que operaram em universos intelectuais muitos diferentes mas entre as quais se pode estabelecer uma afinidade real de perspectivas.
Bento Gonçalves entra então em 1922 na ? e entre 1922 e 1926 faz o serviço militar. Os dois últimos anos de tropa foram passados em Luanda, nas Oficinas gerais do Caminho de Ferro, e é aqui que concretamente ele se iniciou na actividade sindicalista, como membro do Sindicato Operário de Luanda. Não sei se esta estada em Luanda terá tido alguma influência num certo acentuar da temática do anti-imperialismo que se vai encontrar nos seus escritos com mais frequência do que era tradicional no movimento operário português. Regressado em Março de 1926, ele envolve-se, como é sabido, no SPAM que era, já à época, um dos organismos afectos à organização dos Partidários da Internacional Sindical Vermelha, i.e., partidários de uma orientação sindical de influência comunista, ligada à III Internacional, e além disso era não só uma das grandes fábricas de Lisboa e de certa maneira um centro de elite operária porque os critérios de admissão eram relativamente estritos mas também o sindicato dos arsenalistas de marinha tinha uma longa história na história do sindicalismo português e até na história da participação política dos operários – e antes disso dos trabalhadores da manufactura – que de resto pode ser comprovada desde o tempo da Revolução de Setembro. Há nomeadamente um ensaio já antigo da historiadora Fátima Bonifácio acerca da participação dos arsenalistas nos acontecimentos de 1836-38.
Pouco depois do seu regresso à actividade no AM, Bento é eleito secretário-geral da Comissão Administrativa, ao mesmo tempo que membro do Conselho Técnico do Arsenal, o que tem a ver com a competência profissional que lhe era reconhecida. Em Novembro de 1927 é então convidado a integrar uma delegação a um Congresso dos Amigos da URSS que se realizou em Moscovo e Leninegrado. Podemos ver nesta fotografia a delegação portuguesa à chegada à estação da Bielorússia (em Moscovo as estações de comboio são conhecidas pelo nome do país a que fazem a ligação, e naturalmente eles tinham atravessado a Alemanha, a Polónia e finalmente a Bielorússia). Vemos então à esquerda o Bento Gonçalves, mais jovem do que nas imagens dele que são geralmente conhecidas, tendo a seu lado o Silvino Ferreira, que já era membro do Partido no tempo da I República. Era membro do SPA Exército e dos PISV, um dos sectores da actividade comunista que teve mais projecção no tempo da I República e também nalgumas iniciativas de reorganização sindical imediatamente posteriores ao 28 de Maio. Esta estadia em Moscovo foi um marco na biografia do Bento Gonçalves, como aliás o era muitas vezes para aqueles que faziam parte dessas delegações. A exaltação da experiência soviética e sobretudo o sucesso que era poder comemorar os 10 anos de existência do Estado operário foi uma experiência que marcou sempre, como se pode ver em muitos testemunhos de pessoas que nesta época fizeram parte de delegações à União Soviética. Aliás nalguns escritos do BG, na própria Contestação ao TME, ele faz referência à importância que teve este contacto com a realidade soviética. O facto também de ele ter a incumbência de fazer o discurso em nome da delegação portuguesa – um discurso centrado na questão do perigo de guerra e na identificação com a defesa da URSS, conforme as directivas do Comintern na época. É visível pelos escritos do Bento que esta estadia foi seguramente meio de acesso a muita literatura –ele lia já francês e depois aprenderá outras línguas, aliás já nos primeiros textos do final dos anos 20 aparecem por vezes citações em alemão. Pôde portanto aceder a uma quantidade de literatura dos Partidos e da Internacional Comunista, relatórios dos congressos do PC(b)R, textos do Lenin, por ex., que tiveram uma importância decisiva na sua formação teórica a partir desta época. Isto vai-se reflectir de maneira muito clara nos artigos que ele publica a partir do regresso no jornal Eco do Arsenal e no ano seguinte também n’ O Proletário, que se publicou legalmente mas era já um jornal comunista e já um fruto da reorganização de 29. Obviamente não há aqui tempo para estar a fazer uma análise destes artigos do Eco do Arsenal, mas é curioso que o primeiro deles é uma resposta a um jornal católico – uma “folha evangélica”, como ele diz. Este artigo é curioso porque revela um certo à vontade na cultura geral? que estava em circulação na época mas que não era qualquer operário português que estava em situação de referir, p. ex. a citação de Durkheim ou de Freud – por mais de uma vez ele se refere às “descobertas da psicanálise de Freud”. Este artigo é muito interessante a meu ver porque estabelece uma relação concreta, no plano intelectual, entre o ponto de partida sindicalista, estritamente produtivista, e o acesso ao marxismo. O artigo é uma contestação da doutrina católica da conciliação entre proletários e patrões, no sentido de dizer que o movimento operário, por ter em vista a reapropriação do trabalho alienado, é ao mesmo tempo um movimento de carácter ético. Ele estabelece mesmo uma certa polémica com o Durkheim para dizer que os sindicatos, enquanto organismos que estabilizam as vontades individuais – o Durkheim apontava o movimento operário como um factor de anomia, de desorganização social – e concluía dizendo que também para os operários há valores materiais e “valores vitais” e que os mais altos entre estes são para o proletariado de natureza ética tanto como os princípios do cristianismo………..Os artigos seguintes são já directamente políticos, tendo até como objecto problemas de carácter internacional em que se reflecte já um conhecimento e uma assimilação da doutrina marxista da crise, embora haja provavelmente uma relacionação da crise financeira que há neste ano com uma crise internacional que em 1928 ainda não existia, e aí pode haver falhas, mas o interessante é notar que, por exemplo, o Pacto de Kellog é objecto de uma análise bastante inteligente sobre os fundamentos económicos do pacifismo americano, quer dizer, das razões por que a América assumia nesta fase um papel pacifista nas relações internacionais. Depois, estes artigos passam já para uma análise, que ainda hoje tem elementos válidos, da concepção abstracta de democracia, que constitui o ponto de partida do ataque dele à social-democracia, aos socialistas, e finalmente uma exposição sintética, mas bem feita, da doutrina leninista sobre a hegemonia do proletariado na revolução democrática. Este texto poderia aliás servir de ponto de partida para uma polémica que se pode talvez fazer amanhã, na conferência do AP Pita, já que ele viu este texto como começo de um stalinismo actual do PCP. Em minha opinião, trata-se pelo contrário de uma exposição fiel do que era a novidade do pensamento leninista acerca da possibilidade da revolução, não em países desenvolvidos como Marx previa, mas em países atrasados. Isto no contexto de uma visão das situações nacionais no quadro das relações internacionais da época. Finalmente, o último artigo desta série que é a meu ver importante pelo que revela do amadurecimento de um pensamento político é o intitulado “O sentido da nossa política”, que começa por ser simplesmente uma polémica como muitas das que tinha havido dos comunistas com os anarquistas. Os anarquistas eram por definição anti-políticos, e esta era uma das críticas que com mais violência dirigiam aos comunistas. Este artigo reivindica justamente a natureza política da actividade comunista, na base desta ideia que depois marca muito o pensamento dele, e que é esta: enquanto a política era apenas uma questão do Estado no sentido estrito, dos aparelhos formais do Estado governados por certas elites, podia fazer sentido uma recusa da política, que correspondia também a um estado de dispersão industrial e até de certa desagregação ou federalismo político, podia fazer sentido o confronto directo operário-patrão, nas comunidades desagregadas dos cidadãos contra a autoridade. Agora aquilo que é original e constitui um veio central do pensamento dele – e acho isto muito curioso pela afinidade que tem com a reflexão do Gramsci – é esta frase:”A política burguesa já transborda dos limites do Estado”. Isto na formulação do Gramsci é dito ao contrário – é o Estado que vai para além da política, quer dizer, que interfere em todos os planos da actividade humana, na fábrica, nas relações de trabalho, nas condições sociais, na habitação, na informação, etc. etc. Mas a substância do pensamento é exactamente idêntica, é assinalar uma passagem da esfera da política para domínios muito mais amplos do que aqueles que antes da I Guerra mundial normalmente lhe estavam relacionados. Para o Bento Gonçalves, como para o Gramsci, a I Guerra mundial é o grande separador das duas épocas históricas. É claro que isto é visto dentro do quadro do pensamento da III Internacional como um sintoma da decomposição do capitalismo na economia, como um sintoma de crise e ao mesmo tempo como tentativa “para uma consolidação mais larga do regime presente” – expressão também muito curiosa – “tornada evidente pela experiência do fascismo.” Por aqui vai passar toda a análise do bento Gonçalves até à morte, praticamente. Também este ponto não é invenção dele, mas corresponde a uma das questões em que o pensamento da III Internacional mais se diferenciou das doutrinas social-democratas, e não marxistas em geral, acerca do fascismo. Quer dizer, ver o fascismo essencialmente como uma forma de transformação do Estado – neste pensamento, o fascismo era por assim dizer o arquétipo e simultaneamente um prenunciador das tendências de fundo da transformação do Estado capitalista. Quer dizer: chegada a sociedade capitalista a um grau determinado de exacerbação dos conflitos sociais por um lado………. A única solução é um Estado simultaneamente repressivo e organizador, porque subordinando os vários interesses parcelares a uma lógica que é uma lógica de classe mas se exerce de forma centralizada. Isto é também o ponto de partida daquilo que ele define como as tarefas que agora se colocam ao movimento operário, e em primeiro lugar ao movimento comunista, e que deveriam consistir numa centralização de meios e de doutrinas que lhe permitisse pôr-se à altura desse desafio representado pelo fascismo.
Estes anos são por um lado os de formação do partido depois da República , vão ser também os de uma iniciativa sindical. O movimento sindical estava profundamente desorganizado por efeitos da repressão que sucedeu, não só ao 28 de Maio, mas sobretudo à revolta de 3/7 de Fevereiro de 1927; mas vão ser também os anos de uma iniciativa num plano directamente político, i.e., de repor o Partido Comunista, que estava nesta altura reduzido a cerca de 70 militantes… (40 em Lx., 20 no Porto e pouco mais, isto para um partido que no período da I República, apesar de tudo, tinha ultrapassado o milhar de membros). A iniciativa desta reorganização não cabe apenas nem tão directamente a BG, mas antes a Manuel Pilar dos Santos, que era já membro do Comité do partido (eles diziam comité e não comité central, visto que na altura não havia mais nenhum comité a funcionar…) É na sequência de contactos entre Manuel Pilar e a célula do Arsenal de Marinha, que dirige várias cartas ao Comité, que acaba por se realizar em Abril de 1929 uma conferência de 14 militantes na caixa do pessoal do AM, conferência que foi o ponto de partida da reorganização que permitiu ao Partido tornar-se activo no movimento sindical. O início da década de trinta vai ser um período de grande vitalidade política em Portugal, porque por um lado está em perfeito desenvolvimento a formação do Estado Novo, da ditadura salazarista, mas é também marcado por intensas lutas políticas, sobretudo o ano 1931 é atravessado pelo impacto da proclamação da República em Espanha e uma série de tentativas revolucionárias em Portugal, portanto uma situação de instabilidade em que o movimento sindical, embora sujeito a repressões arbitrárias, consegue sobreviver, as associações de classe existem e a Comissão Intersindical – a nova iniciativa sindical comunista – conseguem uma afirmação e uma projecção grandes, nomeadamente no desencadeamento do movimento de luta pelo horário de trabalho e pelo subsídio de desemprego. Ao longo de 1930? encontramos, no jornal Eco do Arsenal, uma série de textos assinados “Spartacus” e “Silvius” que julgo que podem ser atribuídos a Bento Gonçalves. Em Setembro de 1930 ele é preso e a seguir deportado para os Açores e depois para Cabo Verde. A actividade e a produção literária dele para o movimento operário não sofreram completa interrupção. Há pelo menos um artigo de análise crítica da greve dos manipuladores do pão, que tinha tido lugar nas vésperas da sua deportação, assinado pelo seu pseudónimo Gabriel Baptista, e esse artigo – um longo artigo muito doutrinário e que reflecte informação sobre a política da ISV – é publicado já em 1931 no boletim clandestino “O Trabalho Sindical”. Este artigo foi certamente enviado dos Açores, onde ele se encontrava, para o continente, e é possível que alguns dos textos publicados em 1932 no Avante sejam da autoria de BG. O facto talvez mais interessante da deportação de Bento em Cabo Verde é que dela resultará o nascimento do seu único? filho, facto praticamente desconhecido até há dois anos, quando foi publicado um livro sobre o Arsenal do Alfeite por dois investigadores que tinham conhecimento pessoal deste filho. Ele nasce quando Bento já se encontrava de novo em Portugal, e até é possível que não tenha tido conhecimento do facto. De qualquer modo, o filho chama-se Gabriel Baptista, e portanto a escolha do nome foi directa ou indirectamente influenciada por ele.
Em 1933, Bento regressa. Encontramo-nos então em plena fase de ofensiva do Estado Novo, que vai pôr em causa a existência dos sindicatos. A ofensiva desenvolveu-se em diversos planos. Ele recomeça a escrever com muita intensidade e os seus textos reflectem bem a consciência de que não se trata de um problema isolado, mas sim de uma ofensiva global, de uma mudança de Estado, do projecto, como ele diz, do “fascismo totalitário”. Já antes ele falava do fascismo como aspecto da existência da ditadura. Agora usa a expressão fascismo totalitário, aliás muitas vezes para dizer que em Portugal o fascismo totalitário à maneira de Mussolini não tem hipótese, mas que é essa a intenção do regime. Em todo o caso, portanto, a ideia de que se trata de um processo de conjunto tendente a condicionar e a enquadrar não só os sindicatos, mas no fundo todos os domínios da actividade económica e social, no plano corporativo, em conjunto com os vários instrumentos de intervenção do Estado na economia e na sociedade, também no plano cultural, etc. No que respeita ao plano sindical, põe-se o problema do que fazer desde o momento em que são conhecidos os projectos, e depois são publicados os decretos de Setembro de 1933 que criam uma nova legislação que subordina completamente os sindicatos ao controlo estatal e os insere no conjunto da organização corporativa. Isto vai ser uma segunda fase activa da função de BG e sobretudo da defesa de uma concepção sobre o que é o fascismo e a maneira como deve ser defrontado. Há nesta fase uma acentuação forte da crítica da tradição anarquista e putschista no movimento operário português, i.e. da tendência para andar a reboque de iniciativas do chamado reviralho. É talvez este o período mais rico e maduro da reflexão de BG………….São textos que exprimem uma reflexão complexa e interessante sobre a situação política e sobre o significado da nova legislação e os meios de a defrontar. Isto daria matéria para uma outra palestra, nomeadamente baseada em escritos, praticamente desconhecidos, como os incluidos no “Boletim do Secretariado e da Comorg”que se publicava clandestinamente em 1933, ou na correspondência com a Internacional, e sobretudo no relatório que apresenta à delegação da IC em Madrid, quando se dirige a Espanha em fins de 1933, justamente para trocar opiniões acerca da preparação da acção de resistência à fascização dos sindicatos. Isso por agora fica de lado. Como sabem, o movimento de resistência à fascização dos sindicatos veio a desembocar numa tentativa um bocado caótica, que foi o 18 de Janeiro, o qual deu depois azo a fortes polémicas entre comunistas e anarquistas. Em todo o caso, o 18 de Janeiro foi uma das raras iniciativas de “frente única pela base e pela cúpula”, para usar as expressões da época, quer dizer, envolveu a participação conjunta das três organizações sindicais existentes, CIS, CGT e FAO, para além de uma comissão representativa dos organismos sindicais autónomos. Além da polémica com os anarquistas, as sequelas do 18 de Janeiro ocasionaram o surgimento de divergências entre BG e José de Sousa, que nos anos da reorganização fora de facto o dirigente mais ligado à prática do Partido. Divergências desmentidas oficialmente no Avante! mas que de facto existiram e correspondiam de resto a temperamentos muito diferentes. Outro aspecto da elaboração do BG nesta época é a que se relaciona com a mudança nos PC a nível internacional para a política de Frente Popular. Mudança que envolveu rupturas profundas com uma concepção mais centrada na hegemonia, e até no protagonismo exclusivo do pc, que dominara até 1933. …Como se sabe, Bento encabeçou a delegação portuguesa ao VII Congresso da IC. É de referir que há dois textos diferentes publicados dessa intervenção, reflectindo o facto de que, nas publicações do Comintern, era habitual haver uma edição integral e outra estenográfica. A diferença resulta apenas disso.
A aplicação da política de Frente Popular em Portugal vai ser muito complexa e de certa maneira limitada e desde logo condicionada não só pela situação de clandestinidade do PCP, como pela limitação da acção de outras forças. No estrangeiro, entre a emigração, a Frente teve alguma existência e já agora é de referir que figuras históricas da I República, como Bernardino Machado e Afonso Costa foram Presidentes, respectivamente honorário e efectivo, do Comité de Acção da FPP, em Paris. Mas como organização interna a FP teve pouca realidade A participação pessoal de BG nisso foi praticamente nula, porque à chegada dele de Moscovo, uma semana depois é preso juntamente com os outros membros do Secretariado, o que aliás vai colocar o PCP numa crise que acabará por só ser superada no princípio dos anos 40, e então em condições muito novas. A estadia de BG em Moscovo durou perto de 3 meses, e enquanto lá esteve ele produziu vários textos que equacionavam os problemas que a política de Frente Popular punha em Portugal. Após a prisão, BG vai primeiro para a Fortaleza de São João Baptista em Angra do Heroísmo e em 1936 integra o grupo de 150 presos que inauguram o campo de concentração do Tarrafal. Já durante a deportação (segundo António Ventura já mesmo no Tarrafal, mas é mais verosímil que tenha começado em Angra do Heroísmo; aliás não é impossível que tenha sido durante a anterior deportação) escreveu as Palavras Necessárias, que permanecem um dos textos mais interessantes para a compreensão da história do movimento operário português e do PCP. É de certo modo motivo de vergonha para os historiadores e em especial que um livro de pouco mais de 100 pp. escrito sem acesso a nenhumas fontes continue a ser uma obra historiograficamente importante, mas em minha opinião isso é em grande parte assim porque, embora seja um livro com vários erros de datas e outros de nomes, em termos de interpretação jugo que é das coisas mais inteligentes escritas, numa perspectiva marxista, sobre o movimento operário português. No Tarrafal, ele será também autor, no âmbito das discussões que havia entre os presos, de um texto de intervenção e de certo modo também de justificação do seu próprio trabalho enquanto dirigente do Partido, que continua a ser uma das fontes mais interessantes para o conhecimento do que foi o Partido Comunista nos anos 30. É a propósito deste opúsculo conhecido como Duas Palavras (mas com o título “Intervenção sobre 12 anos de actividade”) que eu dizia ao princípio que a edição da Legião portuguesa é mais científica do que a do PCP. É mais integral, inclui nomeadamente o famoso capítulo “Considerações sobre a ‘Política Nova’” – que, na altura da 1ª edição pelo PCP, em 1970 ?, foi considerado inconveniente, o que é inteiramente compreensível, menos compreensível é que tivesse continuado a sê-lo pelos editores de A Opinião, em 1976. Ou então ignoravam a existência desse capítulo. Isto tem-se prestado a que o assunto seja muitas vezes referido como se fosse uma matéria de vergonha para o PCP, nomeadamente porque coincidiria com a defesa do Pacto germano-soviético, que também se aceita sem mais discussões que seja motivo de vergonha. Na verdade, o capítulo “Considerações sobre a Política Nova” nada tem a ver com o Pacto germano-soviético, tem a ver com uma certa atitude preconizada de aceitação da mobilização e da participação militar num contexto em que Portugal fosse agredido. Este capítulo refere-se a uma posição tomada ainda antes da eclosão da Guerra, mas em que o expansionismo nazi já era claro, e tratava-se portanto de uma questão posta em relação à actuação dos comunistas, não só de Portugal, contra a possível invasão nazi.»
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