* JOSÉ ANTÓNIO CABRITA *
A PIDE EM PINHAL NOVO. PARA QUE A MEMÓRIA NÃO ESMOREÇA
Câmara Municipal de Palmela || 2017
[Câmara Municipal de Palmela || 2017]
Numa edição cuidada e rigorosamente documentada em cada um dos seus doze capítulos, tendo na capa uma fotografia de Maurício Abreu, "renomado fotógrafo, que aceitou ceder generosamente a fotografia que dá rosto ao presente livro" [pp. 16-17], José António Cabrita tem como preocupação histórica do livro "A PIDE em Pinhal Novo - Para que a memória não esmoreça" evocar e homenagear os dez presos políticos associados àquela terra e levados "para os curros do Aljube, para o isolamento de Caxias, para o segredo de Peniche".
Num pertinente aviso metodológico, reforçado em cada um dos nomes evocados, relembra que "os processos da PIDE, tal como se conhecem, devem ser considerados com precauções redobradas no que concerne a certificações da realidade" [p. 13], já que as declarações dos presos eram obtidas sob as mais variadas violências e torturas, não sendo "facilmente perceptíveis as falsidades que os interrogadores fabricam [...] em ordem a validarem [...] o seu ofício de bestas sem limites" [p. 13] e, por isso, procurou ir mais além "dos registos históricos e das fontes legitimadas", cruzando-os com as memórias possíveis dos protagonistas e lembranças de familiares e amigos, a que acrescenta as suas próprias memórias, socorrendo-se das palavras de António Borges Coelho de que "Não há história asséptica. Nenhuma bata esterilizada nos torna imunes" [p. 12].
Porque "A temática que este livro aborda, constitui, ainda, um território humano feito de muitos segredos, de persistentes omissões, de receios e de medos inculcados nos sentidos, de suspeições não apagadas, mas inconfessáveis, de imagens imaginadas e ideais, a par da realidade, muitas vezes cruel" [p. 13], importa desvendar as biografias de pinhalnovenses que, enquanto resistentes antifascistas assumidos ou presos caídos nas malhas da polícia política, conheceram os diferentes cárceres da ditadura entre 1936 e 1967.
Antes de se centrar em cada um dos dez presos políticos de Pinhal Novo, e para que a memória não esmoreça, José António Cabrita sintetiza a evolução e explicita a terminologia e raio de acção das sucessivas polícias com intuito repressivo surgidas a partir de 1918, com Sidónio Pais (Repartição da Polícia Preventiva), até à criação da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (1933) e Polícia Internacional e de Defesa do Estado (1945), baptizada, em finais de 1969, Direcção Geral de Segurança.
E, também para que a memória não esmoreça, relembra "os lugares de clausura, cada um tão terrível como os demais" [p. 27], cuja jurisdição estava entregue à PVDE/PIDE/DGS, "um Estado dentro do Estado", e "onde foram encarcerados tantos opositores ao regime salazarista, corajosos e impenitentes, e onde muitos perderam a vida" [p. 27]: Aljube de Lisboa e do Porto, Caxias, Peniche; Angra do Heroísmo; Tarrafal de São Nicolau e Tarrafal de Santiago (Cabo Verde); Aipelo, Ataúro e Oé-Cussi (Timor); Ilha das Galinhas (Guiné); Missombo e São Nicolau (Angola); Machava, Ponta Mahone e Ilha do Ibo (Moçambique).
Por cada nome perpassa, numa teia de acontecimentos, memórias e sociabilidades familiares e locais, a história de 48 anos de repressão fascista, identificando as responsabilidades dos algozes de cada situação, a par de 48 anos de persistentes resistências que haveriam de culminar em 25 de Abril de 1974. Sem dúvida que uma das mais-valias do livro é o processo como o Autor, que tão bem conhece Pinhal Novo e assume a preocupação de o dar a conhecer, cruza cada uma das história de vida e prisional dos detidos pela PIDE com a sua inserção familiar, profissional, social, cultural e económica locais, pondo, ainda, o enfoque nas diferentes sociabilidades em que se moviam e quão importantes estas foram no apoio às famílias, vítimas das arbitrariedades da polícia política fascista.
Se cada um dos presos enforma um percurso único, une-os as vivências colectivas da terra onde nasceram, escolheram viver ou trabalhar, bem como as repercussões de se ser um preso político nas respectivas famílias e o medo de colegas de trabalho, vizinhos ou conhecidos em arriscar qualquer cumprimento ou troca de palavras quando regressavam daquele calvário inconfessável.
Os dez detidos surgem em retrato inteiro e íntegro, empenhando-se o Autor por contrariar o exclusivo olhar, sempre redutor, dos arquivos da PIDE e dos seus tribunais. Ei-los:
António Marreiros [16/01/1910 - 12/07/1971], grumete de manobras do navio Bartolomeu Dias aquando da revolta dos marinheiros de 8 de Setembro de 1936, "aquele que esteve preso no Tarrafal", [p. 37], que integrou a violentíssima Brigada Brava, que conheceu a "frigideira", onde penou 42 dias, e de onde só regressou em Junho de 1953 para, mesmo assim, dar entrada em Peniche. Quando libertado, depois de 17 anos de clausura, contava 43 anos de idade, os seus pais já tinham falecido sem nunca os ter voltado a ver, o filho tinha 22 anos e meio.
[António Marreiros || ANTT || RGP/4261 || PT-TT-PIDE-E-010-22-4261]
Manuel Veríssimo da Silva [02/02/1929 - 18/03/2000], o médico nascido em Pinhal Novo e que se licenciara em Coimbra em Julho de 1959, eleito, em Janeiro de 1962, Presidente da Direcção da Sociedade Filarmónica União Agrícola e preso pela PIDE no dia a seguir à tomada de posse, acusado de ter proferido frases de natureza subversiva aquando dos acontecimentos de Beja ocorridos nessa passagem de ano. Preso em 6 de Janeiro e libertado em 12 do mês seguinte, Veríssimo da Silva, que já tinha ficado isento de todo o serviço militar, "foi mandado para Angola, integrado numa força de cavalaria, como tenente miliciano médico" e aí permaneceu de 1964 a 1966 [p. 89]. Apesar de ser "homem de inspirações monárquicas" e "a sua prática política [...] muito moderada" [p. 92], nunca mais deixou de ser vigiado pela PIDE.
José Artur dos Santos Cardoso [10/12/1932 - 19/07/1992], pintor dos quadros do Barreiro da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses - CP que, aquando do Golpe de Beja, integrou o "comando Serra" [p. 95], e teve "lugar de certo destaque nas acções de planeamento e de recrutamento", tendo sido em sua casa que ocorreram reuniões conspirativas e pernoitado, algumas vezes, o amigo Manuel Serra. Implicado nas três tentativas de assalto ao quartel de Beja, seria preso pela PIDE em 30 de Março de 1962: julgado em 29 de Julho de 1964, foi condenado a 2 anos anos e um mês e saiu em liberdade vigiada em 31 de Julho de 1965, obtendo a liberdade definitiva em 28 de Janeiro de 1971.
José Ferreira da Silva [29/09/1933 - 15/04/1986], admitido nas oficinas do Barreiro da CP como aprendiz eventual quando ainda não tinha quinze anos e que, quando desempregado, foi aliciado pelo amigo José Artur dos Santos Cardoso, para participar no assalto ao quartel de Beja no último dia do ano de 1961. Preso em 11 de Abril de 1962, metido nos curros do Aljube e interrogado, em 3 de Maio por Álvaro Pereira de Carvalho e Sílvio Mortágua, foi levado para Caxias no dia 4. Julgado, em 29 de Julho de 1964, pelo Tribunal Militar Territorial de Lisboa, foi condenado a dois anos de prisão maior e saiu em liberdade condicional em 12 de Março de 1965: a liberdade definitiva só chegaria em 25 de Maio de 1970. Segundo a esposa, com quem casou quando estava preso em Caxias, "ele não sabia ao que ia", tendo sofrido muito na prisão: "não o deixavam dormir e que o metiam numa sala com água a cair" [p. 115].
Artur Pereira das Neves [n. 27/12/1929], o operário serralheiro da Cometna e exímio jogador de xadrez, militante, juntamente com a mulher, a operária têxtil Maria da Graça Sousa Neves, do Partido Comunista, preso em 24 de Maio de 1967. Da revista policial à residência, levaram um volumoso manuscrito seu sobre a situação política em Portugal e nunca recuperado, apesar das diligências efectuadas após 1974. Dias depois da prisão, a mulher organizou um documento em abono do companheiro e reclamando a sua libertação, contendo um total de 86 assinaturas, entre as quais as de 24 mulheres. Em 6 de Junho, endereçou-o ao director da PIDE, enviando-o por correio, tendo alguns dos subscritores vindo, também, a ser presos. Artur Pereira das Neves foi duramente torturado, física e psicologicamente, na António Maria Cardoso: socos, pontapés, agressões com objectos vários, pistolas encostadas à cabeça e submetido, numa das vezes, à tortura da estátua durante treze dias e treze noites, recusando, quase sempre, a responder a qualquer pergunta ou a assinar qualquer auto. Para além do seu mutismo perante a PIDE, José António Cabrita chama a atenção para o facto de Artur Pereira Neves se recusar a olhar a objectiva da máquina fotográfica dos carcereiros, aparecendo de olhos cerrados aquando do acto de tirar as fotografias que constam do Registo Geral de Presos, sendo visível uma mão a segurar-lhe a cabeça. Apesar de não ter proferido quaisquer declarações, a PIDE tinha um extenso relatório sobre as suas actividades, considerando que entrara para o Partido Comunista em 1958, quando trabalhava nos estaleiros da CUF, na Rocha do Conde de Óbidos, e que em meados de 1962, fora enviado para a União Soviética, onde permaneceu dez meses. Julgado em 19 de Fevereiro de 1968, foi condenado a 2 anos e 10 meses de prisão maior, 15 anos de suspensão de direitos políticos e aplicação de medidas de segurança de internamento de 6 meses a três anos, saindo de Peniche em 21 de Dezembro de 1970. Voltaria, então, à acção política, tendo conseguido colocação na Mague, em Alverca onde, depois de algum tempo, passou a viver com a família.
António Augusto Boteta Grilo [04/05/1934 - 22/02/2011], fogueiro da CP, preso em sua casa em 17 de Julho de 1967, acusado de integrar uma célula comunista em Pinhal Novo organizada por Artur Pereira das Neves. Libertado em 5 de Dezembro do mesmo ano, já que não havia quaisquer indícios de tal célula, nem do relacionamento conspirativo com Artur Neves, saiu de Caxias com a saúde muito debilitada devido às torturas e interrogatórios.
Carlos Alberto da Silva [25/04/1926 - 28/04/2009], serralheiro nas oficinas do Barreiro da CP e preso por seis agentes da PIDE no local de trabalho em 17 de Julho de 1967, quando já tinha 41 anos de idade, acusado pelos mesmos motivos de António Grilo. Tal como este, tinha assinado o documento a favor de Artur Neves. Do Barreiro levaram-no para as instalações da PIDE em Setúbal, de onde seguiu para interrogatório na António Maria Cardoso a caminho de Caxias. Submetido a quatro interrogatórios e torturado, sofrendo a tortura da estátua, entre outras, terá afirmado que fora aliciado para o Partido Comunista no início dos anos 60, tendo desenvolvido a sua acção política nas oficinas da CP no Barreiro. Solto ao fim de cinco meses, por não se conseguirem provas da sua ligação a Artur Neves e à célula do Pinhal Novo. Não pôde retomar o seu trabalho na CP, devido a um parecer da PIDE que desaconselhou a sua reintegração, provavelmente pelo seu envolvimento político em anos anteriores. Faleceu em 28 de Abril de 2009, com 83 anos completos. Militante comunista.
Desidério de Oliveira Macau [n. 25/04/1937], trabalhador da Siderurgia Nacional, com uma loja de mobílias aberta em Pinhal Novo havia pouco tempo. Preso no mesmo dia que António Grilo e Carlos Alberto da Silva, igualmente acusado de ligações a Artur Neves e a uma célula do Partido Comunista em Pinhal Novo. Em Caxias, chegou a partilhar a cela 6, localizada ao lado esquerdo do primeiro andar - pavilhão norte, com Rodrigo Apolónia Bento. Interrogado três vezes, foi submetido à tortura do sono durante quatro ou cinco dias e agredido duas vezes: com um objecto com um palmo de cumprimento que tinha uma bola de borracha numa das pontas e, na outra vez, com cinco murros "que lhe deixaram marcas nos dentes e na pele da cara" [p. 162]. Em Caxias, ainda passou pelo isolamento, no cubículo 29, no segundo andar do pavilhão norte. No tempo de cativeiro, e quando lho permitiam, jogava às cartas, "que ele próprio fazia com o papel dos maços de tabaco, embora não fumasse", "desenhava, em folhas que conseguia arranjar lá pela prisão, já que o papel que Isabel lhe levava para esse efeito, por ocasião das visitas, não era autorizado a entrar" [p. 165] ou escrevia poesia. Possui, ainda, alguns desses desenhos, todos devidamente carimbados pela PIDE, onde surge "o filho, ou outros meninos, ou a imaginação do futuro que ele julgara ter encontrado na loja de mobílias a que recentemente abrira as portas" [p. 165]. No verso de uma fotografia do seu filho, "de que nunca se separou", escreveu: "O meu companheiro dos dias amargos da minha vida" [p. 165]. Libertado ao mesmo tempo que Carlos Alberto, juntos percorreram o caminho de regresso ao Pinhal Novo.
Rodrigo Apolónia Bento [25/12/1925 - 31/05/2008], escriturário da CP, trabalhando em Lisboa nos Serviços Médicos, era conhecido por ser muito bom jogador de damas, "imbatível", e "um dos mais competentes xadrezistas" da terra, sendo preso pela PIDE em 17 de Julho de 1967. Era o quarto homem a ser acusado de integrar uma célula comunista do Pinhal Novo só porque se cruzara com Artur Neves, com quem jogara xadrez, tendo estabelecido, por isso, certa amizade. Libertado, tal como os outros, em 5 de Dezembro de 1967, nunca mais foi o mesmo desde que saiu da prisão: isolou-se e tornou-se taciturno [p. 174].
Brito da Silva Rosa [24/09/1927 - 02/09/2005], ferroviário, com as funções de factor a prestar serviço no apeadeiro de Montenegro, antes da estação Funcheira, foi preso no dia 19 de Julho de 1967, pelas seis e trinta da manhã, quando se apeava na estação ferroviária do Pinhal Novo, acusado de integrar uma célula comunista local. Estava, ainda, com o fardamento da CP. Num segundo interrogatório, terá afirmado que passou a receber mensalmente o jornal Avante! através de Artur Neves e que, por duas vezes, contribuiu com dinheiro para o Partido Comunista, embora não fosse seu militante. Segundo o filho, era possível que tivesse sido o pai a dactilografar o documento abaixo-assinado a favor de Artur Neves [p. 184]. Libertado, tal como os restantes, em Dezembro, voltou ao seu lugar na CP, sendo transferido para a estação de Mato de Miranda, na Linha do Norte. Residiu, primeiro, em Vale de Figueira e, depois, em Torres Vedras. A seguir ao 25 de Abril voltou para o Pinhal Novo.
Apesar do medo, da violência, das prisões arbitrárias, valia a pena resistir e, nas eleições para Deputados à Assembleia Nacional, de 26 de Outubro de 1969, ganhou, na assembleia eleitoral de Pinhal Novo, a lista da CDE com 229 votos contra 219 da do governo.
O meu muito obrigado a José António Cabrita pela disponibilidade e prontidão com que facultou este importante livro de combate à desmemória histórica do que foi o fascismo português, retirando do esquecimento dez resistentes pinhalnovenses.
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