[Cipriano Dourado]

[Cipriano Dourado]
[Plantadora de Arroz, 1954] [Cipriano Dourado (1921-1981)]

sábado, 24 de outubro de 2020

[2411.] JOSUÉ MARTINS ROMÃO [I] || HOMENAGEM A HERCULANA DE CARVALHO - 29/10/1976

 * SÍNGELA HOMENAGEM À MULHER DOS ANTIFASCISTAS PRESOS NO TARRAFAL *

Intervenção de Josué Martins Romão [13/04/1918 - 30/10/2006] na sessão evocativa dos 40 anos da entrada dos primeiros presos políticos no Campo de Concentração do Tarrafal, promovida pela URAP na Voz do Operário em 29 de Outubro de 1976.

[Josué Martins Romão || Alverca || 29 de Outubro de 1976]

«Se é porventura verdadeiro que em muitas centenas de presos que passaram longos anos no Campo de extermínio do Tarrafal foram todos apenas homens, poderá à partida, pressupor-se que lhe cabe por inteiro e em exclusivo todo o cortejo de sofrimento. Nada mais ilusório porquanto, sabemo-lo bem, em muitíssimos aspectos, a nossa mulher penou bem mais.

Agora que estamos em condições de fazer um balanço do processo requintado e cientificamente estudado de nos liquidarem a todos; que sentimos bem na pele quão monstruoso e implacável é o fascismo, somos levados a concluir que as mulheres nossas mães, nossas companheiras, nossas irmãs e até simples namoradas, embora, na aparência, em “liberdade”, sofreram, as que não estavam conscientemente formadas politicamente, infinitamente mais que nós – presos no Tarrafal. Pensarmos nós o que não representa de dor, de ansiedade, de sofrimento atroz, estar dias, meses, e casos houve que até anos, sem saber nada, absolutamente nada do seu ente querido?! Não há dúvida que todas tiveram a sua quota parte de incomensurável sofrimento. E que dizer então da Mulher nossa Mãe!?...

Nos longos anos que passámos no Tarrafal (nós dezasseis anos completos e outros houve que lá estiveram dezoito) apenas tivemos uma visita. E, caso curioso, foi a Mãe de um companheiro nosso (que vive na nossa memória como um símbolo de coragem, de abnegação, de amor ao próximo): - HERCULANA DA COSTA CARVALHO.

Mulher operária, da indústria têxtil, onde trabalhou de tenra idade atá aos dezoito anos de idade. Com o casamento passa à classe burguesa, onde os problemas de dinheiro deixam de existir. Entretanto nasce-lhe o filho. Este cresce. Chega a frequentar o 1.º e 2.º anos de engenharia e precisamente por ser um homem dotado de inteligência, de qualidades morais excepcionais ingressa na luta antifascista e é preso passados poucos meses de se lançar na luta. Sem julgamento, sem culpa formada enviam-no de pronto para o Tarrafal.

O nazi-fascismo, por essa altura, começava já a desmoronar-se. No Campo de Morte Lenta, nós, os que para lá fomos de início, e que até então vivemos no mais completo isolamento do que se ia passando pelo mundo, começamos a partir daqui a ter certas e determinadas regalias que até então nos estavam inteiramente vedadas.

Quis a sorte que este amigo e grande combatente antifascista fizesse anos logo após poucas semanas de ali chegar. Não menos sorte tivemos que a Mãe desse bom e grande amigo Guilherme da Costa Carvalho tivesse meios suficientes e levasse à prática os planos que arquitectou. Estar junto do filho amado no próprio dia em que ele fazia vinte anos. Descrever todos os obstáculos que esta Mãe teve de enfrentar, desde a respectiva autorização para a visita, ao fretar um avião, com um mínimo de segurança, ao barquinho de cabotagem da ilha do Sal para a ilha de Santiago (onde nos encontrávamos) era, porventura, só por si, uma epopeia digna de registo à parte. Mas a grandeza maior desta excepcional Mulher não se limitou só à visita ao filho. Mal abraçou o filho e de imediato, um a um, todos os companheiros dignos da sua qualidade de presos antifascistas, esta mulher, como que a pedir-nos desculpa da sua ousadia, propôs-nos isto:

“- Amigos! A alegria, como deveis calcular, que eu sinto neste momento é imensa. Poderá, talvez, interpretar-se como egoísmo de Mãe estar hoje aqui presente. Mas ao vê-los a todos sinto-me como que envergonhada ao lembrar-me das vossas mães, das vossas companheiras, enfim, de todos os vossos familiares que jamais poderão ter a sorte que eu tive, enquanto aqui permanecerem. Peço-vos, do coração, que me forneçam uma lista com os vossos nomes e respectivas moradas de vossos familiares lá na terra…”

Do Algarve ao Minho, nos lugares mais recônditos (onde para lá chegar se tem que ir com o credo na boca) havia familiares de presos. Pois esta Mulher extraordinária, esta Mulher símbolo da Mulher dos antifascistas presos, a todos os familiares espalhados pelo Continente contemplou com amor, num gesto a todos os títulos imorredoiro. Mais, ao verificar a miséria porque muitas delas passavam, de ver a imensa dor e privações porque todas passavam sentiu o que todos nós, aliás, sentimos ao termos pleno conhecimento dos factos: - Que o nosso mau passadio, embora durante longos anos numas condições em que o pior não era morrermos mas conservarmos vivos, comparado com aquele quadro que se lhe deparou lhe pareceu infinitamente menor. Só que nós havíamo-nos lançado conscientemente na luta, acontecesse o que acontecesse. Elas, Mulheres, na sua quase totalidade, só porque eram mães, companheiras ou irmãs. Pelo SEU único amor eram capazes das proezas arrojadas. 

No dia em que o MEU (egoisticamente falando) se transformar no colectivo NOSSO, a Mulher, companheira do homem, será, sem sombra de dúvida, uma força e um poderoso meio de acabarmos de uma vez para sempre com os explorados e os exploradores.

Glória, pois, à Mulher antifascista!!!

Alverca, 29 de Outubro de 1976

a) Josué Martins Romão»

[João Esteves]

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