* SÍNGELA HOMENAGEM À MULHER DOS ANTIFASCISTAS PRESOS NO TARRAFAL *
Intervenção de Josué Martins Romão [13/04/1918 - 30/10/2006] na sessão evocativa dos 40 anos da entrada dos primeiros presos políticos no Campo de Concentração do Tarrafal, promovida pela URAP na Voz do Operário em 29 de Outubro de 1976.
«Se é porventura verdadeiro que em muitas centenas de presos que passaram longos anos no Campo de extermínio do Tarrafal foram todos apenas homens, poderá à partida, pressupor-se que lhe cabe por inteiro e em exclusivo todo o cortejo de sofrimento. Nada mais ilusório porquanto, sabemo-lo bem, em muitíssimos aspectos, a nossa mulher penou bem mais.
Agora que estamos em condições de fazer um balanço do processo requintado e cientificamente estudado de nos liquidarem a todos; que sentimos bem na pele quão monstruoso e implacável é o fascismo, somos levados a concluir que as mulheres nossas mães, nossas companheiras, nossas irmãs e até simples namoradas, embora, na aparência, em “liberdade”, sofreram, as que não estavam conscientemente formadas politicamente, infinitamente mais que nós – presos no Tarrafal. Pensarmos nós o que não representa de dor, de ansiedade, de sofrimento atroz, estar dias, meses, e casos houve que até anos, sem saber nada, absolutamente nada do seu ente querido?! Não há dúvida que todas tiveram a sua quota parte de incomensurável sofrimento. E que dizer então da Mulher nossa Mãe!?...
Nos longos anos que passámos no Tarrafal (nós dezasseis anos completos e outros houve que lá estiveram dezoito) apenas tivemos uma visita. E, caso curioso, foi a Mãe de um companheiro nosso (que vive na nossa memória como um símbolo de coragem, de abnegação, de amor ao próximo): - HERCULANA DA COSTA CARVALHO.
Mulher operária, da indústria têxtil, onde trabalhou de tenra idade atá aos dezoito anos de idade. Com o casamento passa à classe burguesa, onde os problemas de dinheiro deixam de existir. Entretanto nasce-lhe o filho. Este cresce. Chega a frequentar o 1.º e 2.º anos de engenharia e precisamente por ser um homem dotado de inteligência, de qualidades morais excepcionais ingressa na luta antifascista e é preso passados poucos meses de se lançar na luta. Sem julgamento, sem culpa formada enviam-no de pronto para o Tarrafal.
O nazi-fascismo, por essa altura, começava já a desmoronar-se. No Campo de Morte Lenta, nós, os que para lá fomos de início, e que até então vivemos no mais completo isolamento do que se ia passando pelo mundo, começamos a partir daqui a ter certas e determinadas regalias que até então nos estavam inteiramente vedadas.
Quis a sorte que este amigo e grande combatente antifascista fizesse anos logo após poucas semanas de ali chegar. Não menos sorte tivemos que a Mãe desse bom e grande amigo Guilherme da Costa Carvalho tivesse meios suficientes e levasse à prática os planos que arquitectou. Estar junto do filho amado no próprio dia em que ele fazia vinte anos. Descrever todos os obstáculos que esta Mãe teve de enfrentar, desde a respectiva autorização para a visita, ao fretar um avião, com um mínimo de segurança, ao barquinho de cabotagem da ilha do Sal para a ilha de Santiago (onde nos encontrávamos) era, porventura, só por si, uma epopeia digna de registo à parte. Mas a grandeza maior desta excepcional Mulher não se limitou só à visita ao filho. Mal abraçou o filho e de imediato, um a um, todos os companheiros dignos da sua qualidade de presos antifascistas, esta mulher, como que a pedir-nos desculpa da sua ousadia, propôs-nos isto:
“- Amigos! A alegria, como deveis calcular, que eu sinto neste momento é imensa. Poderá, talvez, interpretar-se como egoísmo de Mãe estar hoje aqui presente. Mas ao vê-los a todos sinto-me como que envergonhada ao lembrar-me das vossas mães, das vossas companheiras, enfim, de todos os vossos familiares que jamais poderão ter a sorte que eu tive, enquanto aqui permanecerem. Peço-vos, do coração, que me forneçam uma lista com os vossos nomes e respectivas moradas de vossos familiares lá na terra…”
Do Algarve ao Minho, nos lugares mais recônditos (onde para lá chegar se tem que ir com o credo na boca) havia familiares de presos. Pois esta Mulher extraordinária, esta Mulher símbolo da Mulher dos antifascistas presos, a todos os familiares espalhados pelo Continente contemplou com amor, num gesto a todos os títulos imorredoiro. Mais, ao verificar a miséria porque muitas delas passavam, de ver a imensa dor e privações porque todas passavam sentiu o que todos nós, aliás, sentimos ao termos pleno conhecimento dos factos: - Que o nosso mau passadio, embora durante longos anos numas condições em que o pior não era morrermos mas conservarmos vivos, comparado com aquele quadro que se lhe deparou lhe pareceu infinitamente menor. Só que nós havíamo-nos lançado conscientemente na luta, acontecesse o que acontecesse. Elas, Mulheres, na sua quase totalidade, só porque eram mães, companheiras ou irmãs. Pelo SEU único amor eram capazes das proezas arrojadas.
No dia em que o MEU (egoisticamente falando) se transformar no colectivo NOSSO, a Mulher, companheira do homem, será, sem sombra de dúvida, uma força e um poderoso meio de acabarmos de uma vez para sempre com os explorados e os exploradores.
Glória, pois, à Mulher antifascista!!!
Alverca, 29 de Outubro de 1976
a) Josué Martins Romão»
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