[Cipriano Dourado]

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[Plantadora de Arroz, 1954] [Cipriano Dourado (1921-1981)]

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

[2882.] CAROLINA BEATRIZ ÂNGELO || ENTREVISTA AO JORNAL "A REPÚBLICA" - 05/04/1911

 * CAROLINA BEATRIZ ÂNGELO *

ENTREVISTA AO JORNAL REPÚBLICA || 05/04/1911

O jornal República publica uma entrevista com Carolina Beatriz Ângelo, a propósito do seu requerimento para se poder recensear:

«Uma eleitora? - A sr.ª D. Beatriz Ângelo quer votar - A ‘República’ entrevista-a

Hoje correu que uma senhora, D. Beatriz Ângelo, uma mulher distintíssima, requerera para ser inscrita no recenseamento. A notícia alvoroçou aquela parte do público, que não está ainda dentro da moderna corrente libertadora. Era certo o boato? A sr.ª D. Carolina Beatriz Ângelo entregara o seguinte requerimento à comissão do recenseamento eleitoral do 2º bairro:

Ex.mo  Sr. Presidente da Comissão do 2º Bairro de Lisboa. Carolina Beatriz Ângelo, abaixo assinada, de trinta e dois anos de idade, natural da cidade da Guarda, freguesia de S. Vicente, viúva, médica, residente em Lisboa na rua António Pedro, S. D., 1º andar (freguesia de S. Jorge de Arroios, 2º Bairro), como cidadão português, nos termos dos artigos 18º e 20º do Código Civil, não excluída dos seus direitos políticos de eleitor por qualquer dos impedimentos taxativamente enumerados no art. 6º do Decreto com força de Lei de 14 de março de 1911, e estando antes compreendida em ambas as categorias de eleitoridade dos nos 1º e 2º do artigo 5º do Decreto referido, por quanto não só sabe ler e escrever mas é chefe de família, vivendo nessa qualidade com uma filha menor, cujo sustento e educação provê pelo seu trabalho profissional, bem como aos demais encargos domésticos, - pretende em  tempo e para todos os efeitos legais, que o seu nome seja incluído no novo recenseamento eleitoral, a que tem de proceder-se por virtude dos artigos 15º, 16º e outros do Decreto citado de 14 de março de 1911. Para tanto, o requer a V. Ex.ª, tendo em vista o disposto nos artigos 17º e 18º do mesmo Decreto com força de Lei. E. R. J. Lisboa, 1 de abril de 1911. Carolina Beatriz Ângelo. (segue-se reconhecimento).

Uma vez lido este requerimento, por sinal bem longe de ser banal, corremos a casa da sr.ª D. Beatriz Ângelo, ali para a Estefânia, tão interessante com o seu ar de faubourg. Fomos recebidos num gabinetesinho, cheio de estantes. Não nos fala aquele interior da existência duma fée du logis. Nada de biscuits, de flores, de gentis futilidades. Aquela severidade revela um cérebro, - amigo, porém, da ordem, do arranjo, - cérebro onde as ideias devem estar cuidadosamente arrumados, dispostas como soldados em parada.

- Ah! vem por causa do meu requerimento?... perguntou a distinta médica, quando reparou que não era um cliente, mas um jornalista que tinha pela frente.

- Tem uma história. É o resultado duma combinação feita há tempos por um grupo de sufragistas neste mesmo gabinete... É possível que outros requerimentos apareçam, - o da minha amiga D. Ana de Castro Osório, por exemplo... As restrições da lei eleitoral não se podem referir a nós, não nos atingem. Esse requerimento é o sinal da batalha. Quer dizer, as sufragistas portuguesas vão entrar numa fase ardente de propaganda e de acção. E pode crer que estamos admiravelmente apetrechadas para uma luta apaixonada. Tratando-se da entrada da mulher na política, diz-se geralmente que o espírito dela não está para isso preparado. Estamos arranjadas, meu caro senhor, se tivéssemos de marcar compasso de espera, enquanto a maioria das mulheres não acaba de adquirir as primeiras luzes...

- Está-nos então prometida uma campanha renhida, sensacional?... perguntamos.

- Conte com esse belo espectáculo, - respondeu-nos a sr.ª D. Beatriz Ângelo. Em breve teremos organizada a nossa Associação. Não vamos roubar direitos aos homens. Que os homens durmam tranquilamente, vamos reclamar somente o que é nosso.

- V. ex.ª tem feito muito pela sua causa?

E a sr.ª D. Beatriz Ângelo sorrindo, apenas disse:

- Bastante, bastante entre as minhas clientes e as minhas amigas...

*

A comissão do recenseamento eleitoral do 2º bairro, reunida ontem para tratar do requerimento da sr.ª D. Carolina Beatriz Ângelo, resolveu dar-se por incompetente e remeter os documentos ao sr. ministro do Interior.

Consta que a petição foi escrita por um conhecido advogado.»

[República, p. 2, col. 1]

[República || 05/04/1911] 

[João Esteves]

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