[Cipriano Dourado]

[Cipriano Dourado]
[Plantadora de Arroz, 1954] [Cipriano Dourado (1921-1981)]

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

[2990.] MANUELA ALEXANDRA QUEIROZ DE BARROS FERREIRA || 08/09/1938 - 23/07/2022

 MANUELA BARROS FERREIRA *

[08/09/1938 - 23/07/2022]

Relatório circunstanciado de uma vida a dois 
(Cláudio Torres e Manuela Alexandra

Edições Afrontamento || 2021


Em “Relatório circunstanciado de uma vida a dois”, livro saído em Novembro de 2021 nas Edições Afrontamento, escassos meses antes do falecimento da autora, aos 83 anos de idade, Manuela Barros Ferreira traça a cumplicidade singular de uma longa vida a dois, iniciada em 1959, ano em que começou a frequentar pintura na Escola de Belas Artes do Porto e conheceu Cláudio Torres, inscrito em escultura.

Esse feliz "encontro" romântico-político, marca o início do seu despertar político, quando ambos, juntamente com outros estudantes universitários, procuravam constituir uma Associação de Estudantes e, simultaneamente, combatiam a ditadura vigente através de reuniões clandestinas e pichagens a nitrato de prata com dizeres antissalazaristas que só se tornavam perceptíveis com a luz do sol. Se os outros jovens, entre os quais Marcela Torres, irmã de Cláudio, dois dos filhos do professor e historiador Flausino Torres, militavam no Partido Comunista, o mesmo não se passava com Manuela, que desconhecia esse envolvimento partidário.

O grupo, vítima de um camarada que prestou declarações quando detido, não tardaria a ser preso pela PIDE, o que aconteceu em 27 de Junho de 1960, sendo levado para as instalações da Rua do Heroísmo, no Porto.

Manuela Barros Ferreira, alvo de vários interrogatórios e que permaneceu presa cerca de três meses, descreve as vivências durante o cativeiro, as solidariedades do dia-a-dia e como se processavam os diferentes contactos entre os detidos políticos, não raras vezes detectados pela PIDE, e entre aqueles e o exterior. 

Quanto a Cláudio Torres, foi-lhe logo aplicada as torturas do sono e da estátua durante nove dias e nove noites, num total de cerca de vinte dias: suceder-se-iam mais dois períodos, um de quatro e outro de sete dias.

A passagem, efémera de um dia, antes de ser libertada, pela Cadeia da Relação do Porto, na Cordoaria, onde conviveu e foi solidariamente acolhida, tal como Marcela Torres, por "mulheres da vida sofridas que nos tratavam como se fôssemos irmãs reencontradas", assim como o posterior envio de Cláudio Torres para a Cadeia Central do Norte, em Paços de Ferreira, remete o leitor para uma outra abordagem das arbitrariedades a que estavam sujeitos os presos políticos, submetendo-os ao "convívio" forçado com detidos por outro tipo de delito.

Julgados em 9 de Janeiro de 1961, Cláudio e António David foram condenados a pena já cumprida, enquanto Marcela Torres foi absolvida, tendo cumprido os mesmos dias de prisão daqueles.

Em liberdade, mas com Cláudio Torres considerado apto para o serviço militar no mês em que se iniciou a Guerra Colonial, devendo comparecer em Penamacor no Verão de 1961, em 3 de Julho, o casal optou pela saída do país, até porque recebera a informação, "muito em segredo", do assassinato em Angola, pelas costas, de um colega militante do Partido Comunista e que fora mobilizado.

A saída por via marítima através de uma lancha do tempo da segunda guerra, com Manuela Ferreira grávida e já casada desde 17 de Junho de 1961, revelar-se-ia uma aventura perigosa e quase inverosímil, com desenlace feliz aquando do desembarque no norte de África, em Tânger.

A fuga aconteceu poucos dias depois do enlace, sendo sete os ocupantes do Eleanor May, rebaptizado Rumo, com destino a Marrocos: dois casais e três jovens, "tentando fugir ao regime de então e à guerra colonial" num barquinho com "pouco mais de cinco metros de comprimento e um motor fora de borda" (Manuela e Cláudio, Fernando Vasconcelos e Maria Helena Vidal, que viriam a participar na "Operação Vagô", em 10 de Novembro de 1961, José Hermínio Duarte, José Valadas, cujo nome verdadeiro era José Duarte Ferreira Afonso, e Valdemar Pinho). Do grupo, cinco já tinham estado presos por motivos políticos e Cláudio Torres e Valdemar Pinho estavam prestes a ser mobilizados.

Foram muitas, e perigosas, as peripécias vividas durante a viagem de 17 dias, com sobressaltos e imponderáveis constantes, para além de discordâncias que rompiam a harmonia inicial dos sete tripulantes.

Iniciava-se, então, mais de uma década de exílio. Primeiro, em Rabat, Marrocos, até Setembro de 1962; depois, em Bucareste, enquanto locutores da Rádio Romena, com emissões em português para Portugal, África e Brasil, usando os nomes Teresa e José Ramos.

Depois do nascimento da segunda filha, Manuela Barros Ferreira começou a estudar Filologia Românica, de forma a preparar um eventual regresso a Portugal, renunciando, assim, às Belas Artes. Já licenciada, o regresso definitivo aconteceria em 1973, ao fim de doze anos consecutivos de exílio, tendo sido detida pela PIDE no aeroporto de Lisboa em 27 de Abril e levada para Caxias, por haver um mandado de captura desde 1962.

Libertada em 17 de Maio, sob caução e residência fixa, por indicação do Prof. Lindley Cintra começou a trabalhar como bolseira no, então, Centro de Estudos Filológicos. Quanto a Cláudio Torres, abandonaria Bucareste em Setembro de 1973, fixando-se em Paris até Abril de 1974, de onde regressou no célebre avião do dia 30.

Com a Revolução, seriam outras as vivências, não menos intensas que as anteriores, mas em Liberdade... Manuela e Cláudio tinham, então, 35 anos.

O livro toma, por isso, um outro rumo, mais centrado no núcleo familiar, respectivos lugares e percursos profissionais, pressentindo-se uma necessidade premente de deixar registado para a posteridade acontecimentos mais privados, entrecruzando-se com muitos outros da esfera pública.

Detalhado e rigoroso, este testemunho de Manuela Barros Ferreira recria uma vida intensamente vivida, onde são muitos os protagonistas, nacionais e internacionais, e em que a resistência ao fascismo e ao colonialismo, os contactos com os diferentes núcleos de exilados políticos portugueses e a capacidade permanente de adaptação ao desconhecido, contornando o inesperado, ganham destaque, a par dos apontamentos políticos envolvendo Flausino Torres, nomeadamente as suas inquietações finais, os dirigentes dos movimentos de libertação com que o casal se foi cruzando, a Primavera de Praga e a transformação ditatorial da Roménia com Ceausescu.

Simultaneamente, as vivências do quotidiano em diferentes contextos culturais, com a reconstituição de espaços, ambientes, hábitos, paisagens, costumes, cores, aromas, sabores, sentimentos e afectos, tornam ainda mais perceptível e relevante esta incursão memorialista de mais de seis décadas.

A capa é da autoria de Sofia M. Bento, tendo por base uma pintura a óleo de Constantin Mara.

Duas notas

A primeira, para a evocação de José Mouga, a propósito do lançamento, com Cláudio Torres, de panfletos clandestinos na Feira de S. Mateus, em Viseu, em finais da década de 1950: "Os dois juntos conseguiram transformar num momento de festa belo e poético os seus apelos à luta contra Salazar, inscritos em letra minúscula nos papéis que as pessoas apanhavam no ar ou no chão." [p. 109].

A segunda: o reencontro, através da palavra escrita, com Joaquim Boiça e Luís Silva, amigos de memórias inolvidáveis do tempo da Faculdade e cujo percurso merece continuar a ser acompanhado. O mesmo para Santiago Macias, mais novo e envolvendo outras histórias, as tais que Cláudio Torres situa no ano de 1985, "quando a festa acabou"...

[João Esteves]

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