[Cipriano Dourado]

[Cipriano Dourado]
[Plantadora de Arroz, 1954] [Cipriano Dourado (1921-1981)]

segunda-feira, 25 de abril de 2022

[2804.] MARIA VELEDA || CARTA PARA ANA DE CASTRO OSÓRIO - 16/07/1912

 * O SUFRÁGIO FEMININO *

CARTA DE MARIA VELEDA A ANA DE CASTRO OSÓRIO 

16/07/1912 || BNP, ACPC, Coleção Castro Osório, Esp. N12/308

«Lisboa, 16-7º-912 

Querida Ana:

Recebi hoje a sua carta e artigo de Ann Moore. Como já deve ter visto, o Camacho embatucou, e não teve piada prova, como é costume. Referindo-se ao seu artigo, mostrou-se magoado; e de então para cá está de veludo... Vai aí o diabo com o sufrágio, e o gesto audacioso do Senado, concedendo-o às mulheres diplomadas. Foi o mais que o nosso Magalhães conseguiu obter. Ele queria que o dessem também às chefes de família e contribuintes; mas os outros lá lhes pareceu demais... é claro que não convém combater esta orientação desde já, para não dar força aos srs. deputados, que, provavelmente não sancionarão em reunião conjunta a deliberação da outra câmara.  Agora era preciso que se fizesse uma grande e boa propaganda; mas estou só. A falta que a Ana faz em Lisboa nesta ocasião! Em todo o caso, mande-me um artigo sobre o voto, que farei publicar no Século. é urgente. A bestiaga da Domitila de Carvalho precisa ser zurzida. Leu a entrevista dela no D. de Notícias, não é verdade? E é aquilo formada em três faculdades! três e ms uma - a da asneira. Nunca em Portugal se falou tanto no sufrágio! Nós lá fomos levar a nossa representação ao parlamento pedindo o voto ms amplo do que o Senado o concedeu. Foi o próprio Afonso costa que me disse “peçam, mas peçam mto, se quiserem obter alguma coisa”. Não pedimos muito; mas se nos concedessem o que pedimos, seria já um grande triunfo. Como, porém, lhe digo acima, receio que a câmara dos deputados desaprove o que a outra fez; - qto ms aceitar as nossas reivindicações! À leitura da representação houve apoiados e não apoiados, partindo todos dos camachistas e almeidistas. Os afonsistas não deram pio; mas creio que com esses se pode contar em grande número. Não sabe? o Ramada Curto é anti-feminista! Um rapaz tão inteligente - para onde lhe havia de dar! O João de Meneses declarou na última sessão - “rejeitava o sufrágio”; e deu uma reprimenda ao Jacinto Nunes porque ele se manifestou a favor. Enfim, quando se começar discutindo a lei eleitoral, mtas surpresas nos estarão reservadas... São 2 meses de expectativa até lá. A Jeanne assistiu à nossa última assembleia, e pareceu retirar-se bem impressionada. Resolveu-se convidar todas as associações femininas a acompanharem-nos na entrega da representação, e assim se fez. As costureiras responderam que “não iam, porque a sua colectividade não tem carácter político”. As socialistas “que não nos acompanhavam, porque desejam o voto com menos restrições”, acrescentando “que estão dispostas a fazer greve nas fábricas e oficinas e a impedir os actos eleitorais, por meios violentos, se não lhes for concedido o voto, nas condições em que elas o pediram”. Quanto à Associação de Propaganda Feminista não se fez representar nem respondeu nada. Vai sem comentários.
Eu vim do Porto ontem, tendo realizado a mh conferência no dia 14. A sala do Centro Democrático é enorme; mas estava completamente cheia. A conferência não foi publica. Julgo ter agradado, pelos aplausos que ouvi, e ainda pelas opiniões trocadas entre os assistentes. Vou publicar a conferência na Madrugada; e depois me dirá a sua opinião. Eu acho-lhe um defeito capital: tratar o assunto ao de leve; mas numa terra como é o Porto, onde o feminismo é letra morta, não podia mmo aprofundá-lo mto. Conheci o Dr. Jayme d’Almeida, com quem fiquei simpatizando imenso. Aquele é que é um feminista a valer. Também encontrei a Beatriz Pinheiro e o marido. Fiz altas diligências para ela aceitar a presidência dum núcleo da Liga no Porto, mas não houve meio de convencê-la. Em todo o caso, se ela não retirar para Lx.a, como parece ter projectado, é provável que aceite; e sei que, se o fizer, temos núcleo de valor, porque as outras sócias são todas muito aproveitáveis.
Fico entusiasmada com a sua ideia da bruxa. Q.do tenciona vir a Lx.a? Preciso estar prevenida com tempo.
A chafarica está cada vez ms desorganizada; e a abelha mestra agarrada com ferrão e tudo ao cortiço... Mas as dissidentes em número de 7, vão fundar outra chafarica, a que darão o nome da Beatriz. Quando cá vier falaremos. Há coisas que não se podem confiar ao papel.
Peça ao Paulino, em meu nome, que me mande alguns versos do seu poema, para os publicar na Madrugada, sim?
Esquecia-me dizer-lhe que os Ridículos publicaram um artigo de fundo, defendendo o voto. Em troca O País (não sei se o lê) tem-nos agredido da forma ms brutal e mais violenta. Só a chicote! Chama-nos Liga das Fúrias, e que a Domitila de Carvalho é que nos [?], que somos piores do que os couceiristas - o diabo!
A propósito de couceiristas: tomara já que esses malditos entrem todos na ordem, a ver se a república caminha. Assim, não há dinheiro que chegue, e anda tudo desorientado. Em todo o caso, este movimento, como tudo no mundo, tem o seu lado bom. Serviu para por à prova a dedicação das nossas tropas e para nos conquistar a simpatia dos outros países. E que me diz aos espanhóis? Malandros!
Mas, voltando ao País: eu não lhe respondo, porque seria ligar-lhe mta importância. Aquilo só serve para...
Não tenho tempo pa mais. Todos os meus lhe enviam lembranças. O Cândido está de abalada pa Loulé; mas vai muito contrariado. Eu não sei se já lhe disse que ele passou o ano, com regular média em todas as disciplinas, excepto em desenho. Também não admira: o professor é um padre...
Cá fico esperando o seu artigo para o Século ou para a Capital, como melhor lhe agradar. Agora é mto preciso. O Magalhães saiu daqui há bocado, e acha que devemos intensificar a propaganda. Ah! se o Brasil estivesse à distância de Setúbal... Quem me dera tê-la cá antes de reabrir o parlamento!
Um abraço mto apertado. Beijos ao Zeca. Outro abraço para o Paulino. Beijos do Cândido para todos.

 Sua do coração

Maria

P.S. - Por este correio, vão ms listas para assinaturas. No Porto foi excelentemente recebida a ideia. Mande-me novamte o endereço da sua casa, porque o perdi.»

 [in João Esteves, 
As Origens do Sufragismo Português
Bizâncio, 1998]

[João Esteves]

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