25/06/1906
«Jornal da MulherÉ quase absolutamente desconhecida entre nós a ideia do jornalismo feminino. Em todos os nossos jornais as secções multiplicam-se dia a dia, os alvitres de sensação tendem a tomar proporções assombrosas, toda a nossa imprensa de hoje disputa, finalmente, o direito de ocupar no espírito do público uma supremacia incontestável de interesse e de valor, e, contudo, mantém-se estranha a esse movimento para o qual convergem no estrangeiro um número incalculável de valiosos e simpáticos impulsos – o Jornal da Mulher.
O que vem a ser o Jornal da Mulher? Não será, sem dúvida, necessária uma explicação transcendente e demorada para que os leitores do Mundo o fiquem conhecendo. O Jornal da Mulher, tal como o compreendemos e deve ser compreendido, é uma publicação singela e concisa, sem artifícios de forma ou racionalismos metafísicos e que ponha o elemento feminino ao corrente de tudo o que verdadeiramente lhe pode interessar, tanto no seu viver íntimo, no seu santuário doméstico como nas suas relações com o mundo e com a sociedade.
Pretendemos, assim, prestar um grande serviço às nossas leitoras, fornecendo-lhes notícias e impressões do movimento das ciências, das letras, da arte e da política, principalmente aquelas em que possamos atribuir à mulher uma parcela de influência e um brado de triunfo. Restrito, como é o nosso meio, sob o ponto de vista da evolução social feminina, não poderá ele também ser a maior parte das vezes, o campo deste trabalho diário. Transportar-nos-emos ao estrangeiro, em espírito e em coração, acompanhando, por meio das principais revistas de diferentes nacionalidades, tudo o que, dentro deste domínio, merecer registo.
Mas o nosso programa não se limitará a este âmbito excessivamente feminista para o nosso meio.
No empenho de a todas as mulheres portuguesas poder interessar esta secção, pomos a nossa pena ao serviço das exigências das mais caprichosas, informando-as de assuntos de modas, de regras de savoir vivre, de todos esses pequenos cambiantes, enfim, que constituem o grande tom das sociedades mundanas.
Desejando dar também à ménagère uma carinhosa prova de interesse, falaremos, neste intuito, alternadamente de economia doméstica, de higiene, inseriremos receitas úteis, colocando assim a dona de casa numa atmosfera familiar e amorável.
Na impossibilidade de darmos ao Jornal da Mulher, na sua missão diária, todo o incremento que um tão vasto programa deveria impor, restringiremos todos os assuntos que tratarmos a uma síntese breve e clara, acolhendo, porém, carinhosamente, todos os pedidos de consulta ou de informação que nos sejam dirigidos, e desenvolvendo, em números subsequentes, qualquer assunto que tenha deixado uma impressão mais grata e duradoira. Assim, também receberemos com prazer toda a colaboração feminina de valor que nos seja enviada para esta secção por senhoras; ainda nesta cláusula O Mundo vem obedecer ao amor que o liga ao feminismo português, facultando-lhe, deste modo, a sua entrada e indispensável cooperação nas lides jornalísticas.
Ao encetarmos hoje esta nova secção, esperamos que, assim orientada, não deixará de merecer os aplausos de todos os que têm até hoje dispensado a este jornal, testemunhos inequívocos de confiança e de apreço.
Feminismo
I
Entre nós, a opinião da inferioridade da mulher prevalece ainda, e bem poucas pessoas admitem que uma mulher possa ser a igual do homem. Para a grande maioria das opiniões, a mulher fica e deve ficar confinada no seu papel de dona de casa.
Felizmente existe sempre, em grande maioria, a mulher que dirige habilmente a sua casa, humilde ou rica, e que é a educadora exemplar dos seus filhos; mas muitas vezes a mulher vê-se obrigada a sair de casa para ganhar a sua subsistência.
Quando, como tantas vezes sucede nos meios operários, a mulher fica viúva, com filhos, é-lhe forçoso abandonar o lar para poder educar e sustentar os filhos queridos. Daí veio a necessidade, para a mulher, de entrar nas oficinas, nas fábricas, isto é, na vida económica propriamente dita.
Essa entrada da mulher na vida actual exterior não deixa de ter os seus inconvenientes. Os casamentos e os nascimentos diminuem em razão directa das ocupações da mulher fora de casa; as estatísticas mais duma vez evidenciaram esse desastroso facto.
Mas, por outro lado, a elevação da mulher e a instrução que recebe agora, não deixam de ser úteis ao bem geral.
Não era Platão que pedia que as mulheres fossem educadas da mesma maneira que os homens?
*Visto que a mulher se vê tantas vezes na imperiosa necessidade de prover à sua subsistência, é preciso que trabalhe. «Case», dir-nos-ão... É fácil dizer, mas para chegar a esse resultado é preciso que o homem e a mulher estejam de acordo, quando mais não seja uma vez.
Ora a grande dificuldade do problema é encontrar marido, porque, em vista das exigências da vida actual, o homem, se tem posição social, inquire do dote, se é operário, do ganho ou do ofício da mulher.
Portanto as que não têm nem dote nem ofício estariam condenadas a morrer de fome. Além disso, não falando senão da Europa, a população feminina é muito superior à população masculina, de onde resulta que muitas mulheres se acham fatalmente na impossibilidade absoluta de criar família. Contudo é preciso viver e para o conseguir, ganhar dinheiro, ganhar a vida.
*Cultivado há muito menos tempo que o do homem, o cérebro da mulher é muito mais novo que o do homem. Apesar disso – ou talvez por isso mesmo – logo que a mulher receba uma instrução semelhante à do homem, é-lhe superior como compreensão.
Tomemos como exemplo as jovens americanas.
Há vinte e oito anos que certos colégios americanos dão igual instrução aos rapazes e às raparigas.
Pois em todos os exames as raparigas distinguem-se mais que os rapazes. – Sim, dizem os adversários do feminismo, mas essa preponderância não persiste depois do colégio. Até hoje as mulheres não deram nem um Shakespeare, nem um Newton, nem um Laplace, um Edison, um Mozart, um Rafael, um grande orador, nada enfim.
Em primeiro lugar este argumento não é um argumento, visto que as mulheres só agora entraram nesse caminho.
Além disso não se pode negar que um número relativamente considerável de mulheres tem brilhado em diversos géneros de superioridade.
Seria inútil citar nomes que estão em todas as bocas e esses nomes para brilharem, tiveram de vencer muito maiores dificuldades, sendo femininos, do que se fossem masculinos.
E depois é preciso não esquecer que durante todos os séculos decorridos não se tinha pedido às mulheres que brilhassem intelectualmente, mas pelo contrário que se escondessem.
Há pouco tempo que lhes é dada instrução completa; serão precisas algumas gerações sucessivas para que essa instrução possa frutificar.
No entanto a lista das mulheres dotadas de um génio superior e tendo dado provas efectivas do seu valor pessoal é já longa e tanto mais significativa quanto elas conquistaram a sua celebridade em condições muito desfavoráveis.»
[O Mundo, 25/06/1906]
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