[Cipriano Dourado]

[Cipriano Dourado]
[Plantadora de Arroz, 1954] [Cipriano Dourado (1921-1981)]

domingo, 14 de fevereiro de 2021

[2494.] MADELEINE PELLETIER [VI] || 15/03/1911

 * MADELEINE PELLETIER *

A Montanha, de 15 de Março de 1911, transcreve de uma revista francesa um artigo de Madeleine Pelletier sobre o sufrágio feminino em Portugal.



«A República Portuguesa e o voto das mulheres

I

     Madeleine Pelletier publica numa revista francesa o seguinte curioso artigo:

 "Uma constituição e o voto das mulheres

Desde 3 de novembro de 1910 (pequeno engano de data) Portugal é dirigido por um governo provisório, composto dum presidente, o sr. Teófilo Braga, e de sete ministros. O governo entrou em ditadura; não há parlamento, porque ainda não houve eleições. As eleições, segundo se diz, realizar-se-ão no próximo mês de abril. // Este longo crédito de poder absoluto concedido a alguns homens pareceria estranho a republicanos franceses. Os portugueses, porém, explicaram que, sabendo o que se passa nos outros países, sobre lentidões, tormentos, conflito de personalidades, dificuldades de todas as espécies suscitadas por um parlamento num país em reorganização, era preferível, pelo menos durante certo tempo, não o ter. // Aos olhos das pessoas de opinião liberal, a situação moral da república portuguesa aparecia, pois, magnífica. No poder, um conselho de homens distintos pelo valor intelectual, sérios, sem rivalidades internas, poderosamente animados do desejo de fazer bem, e ante eles poucos obstáculos: um povo amorfo, ignorante é verdade, mas que lhes dava toda a confiança. Que não se iria assim realizar neste feliz país? Portugueses de gema afirmavam que em alguns meses a sua república faria mais reformas liberais e sociais que a República francesa fez nos seus quarenta anos de existência. // Os factos bem depressa confirmaram o que se dizia; a imprensa do mundo inteiro publicou a constituição da república portuguesa; continha medidas excelentes, entre as quais o voto das mulheres. // Como é de supor, as mulheres estariam cheias de alegria. De diversos países chegavam telegramas de felicitação ao governo; a nossa «Solidariedade das Mulheres» organizou em Paris uma grande reunião para celebrar esse feliz acontecimento. Mas, do lado da colónia portuguesa vinham algumas dificuldades. Depois de ter aprovado o nosso projecto de reunião, fez-nos muitas objecções; segundo ela, andávamos prematuramente; não era certo que as mulheres fossem votar em Portugal; alguns governantes eram completamente contrários ao feminismo. // Resolvi verificar a situação por meus próprios olhos; e parti para Portugal.

Vista geral de Lisboa

Esperava ver em Lisboa uma reprodução de Paris de 1793; cidadãos de boné vermelho e de lança em punho, mulheres vestidas das cores nacionais, rondas de «sans culottes» dançando ao som d’um Ça irá português. Nada disso: as ruas tranquilas cheias de pessoas que iam para os seus misteres. Dir-se-ia que a república foi já estabelecida há vinte anos. Apenas repúblicas em gesso, brochuras sobre a recente revolução, retratos dos membros do governo expostos nas vitrines das livrarias mostram que se está no princípio do regime; mas diante dessas vitrines os nacionais passam com indiferença; para se deter, é necessário um estrangeiro como eu. // Os portugueses não são iconoclastas; na praça do Comércio, uma estátua real continua a erguer-se; atravesso a rua d’El-Rei. Somente, na Avenida da Liberdade, uma coroa real gravada sobre o obelisco está deteriorada; foi uma granada revolucionária que praticou o desbarato. // Esta indiferença pelos sinais exteriores do regímen saído pode dar uma impressão de força. O governo, sentindo-se solidamente estabelecido, não julga necessário estar a riscar do espírito do povo o regímen precedente. //   Quem sabe, porém, se essa moderação na vitória não visa a tranquilizar os reaccionários, a fazer-lhes compreender que, se os homens mudaram, as coisas ficaram e ficarão as mesmas?

Na Arcada – Falando com vários ministros

A praça do Comércio onde fica o palácio do governo (?) é mais movimentada. Cobre-a uma multidão; há bandeiras e grita-se «Viva Braga! Viva a República!». São delegados provinciais que vêm trazer ao governo a adesão dos seus mandatários. // Entrei no palácio; fizeram-me esperar numa pequena saleta, onde está instalado o chefe do gabinete. Muito democrático o compartimento; o director dum jornal revolucionário de Paris teria certamente mais luxo. Paredes brancas, uma secretária vulgaríssima de acaju, algumas cadeiras cobertas de papéis. // Não tardam a anunciar-me que o presidente está pronto a receber-me; atravesso uma grande sala; o sr. Braga está de pé diante duma secretária; convida-me a sentar-me. De idade de 55 anos, (?) aproximadamente, é alto (?) e magro, cabelo branco cortado à escovinha, o olhar bom e recto, um qualquer fato de sábio que não pensa na sua toilette. De princípio, parecia um pouco fatigado; mas o seu rosto anima-se; «il a ouvert le tiroir», segundo a frase de Napoleão, e expõe-me as suas ideias.

O que diz Teófilo Braga

Foi ele que propôs o voto das mulheres; fez, acrescentou, um croquis de constituição e nele incluiu o sufrágio feminino. Esse sufrágio será restrito: para poder votar uma mulher deverá ou ter um diploma universitário ou desempenhar uma função social que assegure a sua vida material. Dado indistintamente a todas as mulheres, o voto talvez desse maus resultados; é possível que as mulheres do povo, muito ignorantes, votem primeiro contra a república. Além disso, quanto mais restrito for o sufrágio, mais probabilidades haverá de ser aceite pelo parlamento. // O presidente Braga é um filósofo; reflectiu durante longos anos e as ideias que expõe são conclusões seguras da sua razão. Disse-me frases que me encheram de felicidade, tanto elas traduzem o meu próprio pensar: «A mulher é a amiga do homem; mas o homem é o inimigo da mulher». - «A emancipação política das mulheres trará excelentes resultados; os homens de Estado não querem compreendê-lo, enclausurados como estão dentro dos seus preconceitos». «A maioria dos homens não vê na mulher senão a reprodução da espécie, eu vejo nela um indivíduo». - «Se a mulher fica presa às ideias retrógradas, é porque não tem entrada na vida pública; cidadã, ela será tão avançada como o homem». // O sr. Braga crê que, em certos pontos, a mulher é superior ao homem; é mais «pura», diz ele; terá, pois, na política uma acção excelente; nunca cometerá as torpezas que os homens cometem para «chegar». // Mais adiante, eu deixei de estar em acordo com o presidente, mas não discuti. // O sr. Braga é um filósofo positivista; crê no poder espiritual, e pensa que será possível no futuro orientar a educação das gerações novas no sentido do maior interesse social. // Stuart Mill pensa que devia ser possível formar os caracteres segundo os dados exactos duma ciência, a etologia; o sr. Braga pensa que se podem cultivar os sentimentos, e, nesse domínio do sentimento, diz que a mulher é superior ao homem. O homem, acrescenta, não é mais que uma energia, gastando a sua actividade a torto e a direito, muitas vezes para os grandes males sociais; a energia não deve ser abandonada a si própria; deve ser guiada por sentimentos orientados com método no sentido do bem do país.

     Ninguém pode entravar a expansão das faculdades femininas

Tudo isso me inquietava um pouco. Augusto Comte pensava também que a mulher era superior pelos sentimentos; mas concluía daí a necessidade da sua escravidão social. Compreendo muito bem que duma teoria análoga o sr. Braga tire a emancipação feminina; eu é que continuo a desconfiar de tudo, da mesma maneira. // Não me seduzem as teorias em nome das quais se pretende consignar a uma ou outra categoria de indivíduos, este ou aquele papel social. Nada é menos estável que os sistemas dos filósofos; nada é mais raro no mundo que a boa-fé. É possível que um dia a harmonia social seja uma realidade; mas nesta ocasião a vida é um campo  fechado. Limitemo-nos a suprimir as barreiras que impedem os indivíduos de dar a sua medida; simplesmente a liberdade fará sempre mais benefícios e menos males que o arbítrio melhor intencionado. // - Mas, retorqui eu, suponhamos, sr. presidente, que nos defrontamos com mulheres muito mal dotadas de sensibilidade mas duma energia superior. Suponde, por exemplo, que têm o gosto da guerra. Deixá-las-eis tornar-se soldados, oficiais, generais? Confiaríeis a uma mulher o comando em chefe dum exército? // - Certamente, respondeu o chefe do governo; não se pode entravar ninguém na expansão das suas faculdades. // - Sr. presidente, a breve fórmula que acabais de mencionar contém todo o feminismo. // Eu queria contudo assegurar-me, se bem que o sr. Braga me parecesse um homem muito sincero, que ele queria seriamente o voto das mulheres e que era para mim alguma coisa mais que o homem de mundo, desejoso de ser agradável a um estrangeiro. Dispus-me então para lhe fazer repetir que manteria, aconteça o que acontecer, o voto das mulheres no seu projecto de constituição; prometeu-mo por quatro vezes. // - Mas, aventurei eu, sr. presidente, se desejais que a mulher tenha voto, porque lho não dais por um decreto ditatorial? Podeis fazê-lo; foi assim que decretastes o divórcio. Ir ante um parlamento é sempre duvidoso; não sabeis que câmara vos darão as eleições. // - Um decreto ditatorial sobre o voto das mulheres é impossível, me respondeu o sr. Braga; há ministros que se opõem a ele.».

[A Montanha || 15/03/1911]

 [João Esteves]

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